sexta-feira, 9 de abril de 2010

O Porco e a Puta



O PORCO E A PUTA




          Tarde da noite e buzinas interrompendo o silêncio. Da fresta vejo a rua em slides, um murmúrio de indecência aliciando a calma, corrompendo a inércia: a puta beija o porco bem aqui embaixo, em troca algum troco, um quase nada suficiente não para massagear a dignidade, mas para mascarar a vergonha de não ser nada. A puta beija o porco podre de bêbado, que a troca, definitivamente, pela garrafa que lhe oferecerá ainda dois ou três goles antes de ser espatifada no asfalto. A puta adormecerá em qualquer canto, mendiga, até demoradamente recompor-se, ante o sol ardente e trágico que lhe trará de volta a vergonha.
A puta não é mais puta. Por breves instantes, enquanto tentar cobrir com trapos os seios cujos bicos se eriçam de frio, enquanto pensar nas feridas abertas no corpo e dentro de algo que parece alma, enquanto fechar a boca para frases feitas e engolir a violência de sua existência pífia e desgraçada.
          O porco ainda não se manifesta, pois nem o sol, nem o odor emanado de seu corpo e de suas vestes foi suficiente para removê-lo do chão duro e abrasivo. E nem a dor de suas vísceras se remoendo e tentando em vão expulsar da circulação o pouco de sangue que ainda lhe resta, imerso em álcool da pior qualidade, pode leva-lo a uma realidade tão desconhecida quanto distante.
          Não há um só momento de lucidez para o porco. Um minuto sequer em que se possa admitir que um resíduo de razão venha desencadear uma progressiva alteração de comportamento, uma remota luz, no fim do tortuoso túnel de sua vidinha demasiado simples. O porco é ainda porco, mesmo que durma, mesmo que sonhe maravilhas, por que o ímpeto de erguer-se do solo o levará de volta ao ciclo infindável da sua loucura.
O porco é ainda porco e não se comove com isso. É alheio ao mundo e mais alheio ainda a ele. E o mundo é alheio a ele também, pois é alheio a tudo a não ser ao estorvo. Então o porco passa a ser algo quando é estorvo. O porco só é gente, ou quase, quando incomoda, não por existir, mas por cruzar o caminho de alguém que, tragicamente é impelido a atravessar uma rua, desviar de calçada, prender a respiração, fazer mórbida caridade ou simplesmente fingir que sua presença não o importuna.
          O porco é ainda porco e nada mudará isso, pois essa é a imagem que ele próprio faz de si, mergulhado em suas infinitas frustrações de porco. Nada mudará isso, nem os favores da puta, nem o beijo doado pela puta, na noite indiferente, nem o som da garrafa estilhaçando no asfalto mais um dia e mais um porre sem dor.
          A puta sabe bem que essa é sua missão enquanto puta: fazer porcos sentirem-se menos porcos, fazer sonhos parecerem atingíveis, fazer mentiras serem um pouco reais. E quem sabe somos um pouco putas ou um pouco porcos ? Quem sabe aliviamos as dores dos outros com nossas mentiras ? Quem sabe nos entregamos sem querer, ou pior: não querendo. Quem sabe deixamos o cheiro de nossos medos nos subjugar e enterramos nossas cabeças tão fundo que seria difícil, a qualquer momento, desenterrá-las... Quem sabe nos recompomos ao sol de um novo dia e sob trapos escondemos nossas vergonhas, sem saber que elas inexistem, e justamente por isso não devemos nada a ninguém.
Não estou nem aí para o porco e pouco me importa se a puta se resfria sob o sereno da noite ou se definha dentro de um corpo magro de Aids. Tenho minhas putas em mim e já me amolam com obscenidades em horas impróprias. Tenho meus porcos que me torturam diariamente na esperança de dominarem meu corpo que resiste ainda e sempre. Todo esses cânceres me corroem, mas são meus e não vivo um minuto sem eles, assim como ninguém vive sem obscenidades e vícios, mais ou menos intensos, mais ou menos doentios.
A puta caminha na rua e escurece. O destino da puta é caminhar na rua e o do dia escurecer. Já não disfarça o mamilo em riste e sim a cara, num batom barato. falos de diversos tipos e tamanhos povoam seus pensamentos e ela quase gosta. Imagina-os chafurdados em seu corpo, entrando e saindo freneticamente de seus esgotos públicos. Imagina o que terá de beijar e lamber e engolir por um pão com mortadela e um refresco de qualquer coisa colorida e sem gosto. O que a atrai não é somente a possibilidade de não morrer de fome, mas o poder de dispor de sua carne e fazê-la estremecer num gozo proibido. Um sorriso se esboça em sua face, enquanto fita os porcos que emergem dos becos, dos bares, como ratos saídos dos bueiros, como miasmas sugados das tubulações pela noite sequiosa de cheiros.
          A puta foi feita para o porco. Completam-se. Na madrugada, como guizos, tilintam num gemido rouco e contido. Saciam-se com seus líquidos, alimentam-se de seus gostos, enquanto durar a fantasia do momento, nem um minuto a mais.
          Não estou nem aí para a puta ou para o porco, mas me incomoda a mesma garrafa, após o mesmo último gole, estilhaçando-se no asfalto frio da minha consciência.

João Mario Fleury Corrêa







3 comentários:

  1. Poxa, que texto: li num gole e o estilo me fisgou. De puta e porco todos não teremos mesmo um pouco? Volto aqui, ah, sim, voltarei para ler mais!

    Abraços

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  2. De puta,certamente que não, mas de porco e puto ahhhhhhhhhhhhhhhhh!yessssssssssssssssss!

    te abraço poeta!

    genial!

    brilhante!

    viva la vida!

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  3. "Quem sabe nos recompomos ao sol de um novo dia e sob trapos escondemos nossas vergonhas, sem saber que elas inexistem, e justamente por isso não devemos nada a ninguém..."

    Mas aprender isso leva tempo...não sei se a coisa chega nessa intensidade, mas um pouco de um e de outro, será que não teremos todos um pouco?

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