sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Sorvete sem Nome




Sorvete de pistache, com gotas de chocolate. Pintura a guache – pensei - que não desbota nem com o aquecimento global.

Se flor tivesse o abacate, seria apropriado adorna-la assim, delicada, menininha, gelado na casquinha.

Te conheci na Uruguaiana, leviana, passeando paralelos em salto agulha, sol na tarde refletida nos teus olhos à paisana. Procurando quem, não sei. Me achou assim, assim, como quem tropeça em vento.

Agora, lento, revejo aquela tarde em pensamento e insisto que talvez houvesse ainda agora, aqui, teu aroma sapoti, tua presença escandalosa de mulher em mim.

Achou-me assim, como quem tropeça em vento e me virei, desbotado, escorando teus braços quando caía estabanada, como cana ceifada nos seus doces anos.

Agradeceu-me, morreu de susto, corou-se um tanto e envergonhada ficou mais linda e desajeitada, então sorriu, ainda tonta.

Tremeu e ficou séria e seu olhar me viu e uma história louca apareceu no ar, de amor antigo, de uma vida outra, de um tempo estranho em que foi minha, sem nunca ter sido, e me deu paz, e fui feliz um instante eterno e a voz sumiu e fiquei mudo em meio ao caos de carros e buzinas e passantes. Fiquei mudo, só sentia.

Endireitou-se no vestido verde uva e aguardou, me olhando, uma palavra, algum convite, uma saída para um mundo paralelo, onde houvesse ela e eu e uma volúpia imensa. Fiquei mudo e tensa disfarçou, falou da chuva e a tarde quente e ainda algo irrelevante sobre saltos altos o bastante para jogá-la ao chão.

Então seguiu na contramão, e fiquei assim, como quem perde um sonho, mudo ainda e incapaz. Num instante percebi que nem seu nome eu saberia naquela tarde e nunca mais.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Da Alegria




Sinto que se arrasta em mim a tua ausência
Perfurando meu corpo em punhaladas de vazio
Meus olhos não precisam olhar para te ver
Se não há tua presença, eu te recrio.

Eu te respiro enquanto vivo e me alimento
Da brisa da tua forma em algum momento
E me abandono, ou me desisto, o que me vença...

Penso que se arraste em mim essa doença
Resíduo do tempo em que eu vivia
Tardes, dias, plenos do desejo da alegria.

Estás de volta? Ao menos range a dura porta
E a luz na fresta infesta a alma de euforia...
Mas já sabia... É só um vazio que me adentra e me agonia.

João Mario Fleury Corrêa

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Purificação Mariana



De todo o mistério
Ficou drama
De toda trama
resignação e vontades.

Calou-se tímida
A pura criança
por medo carpiu
retrocedeu no sonho.

Purificação Mariana
De almas assaltadas
De mentes cansadas
E corpos ressentidos.

Purificação Mariana
De todas as dores
Dos duros lamentos
Dos velhos pecados.

Quero a poesia
E penso que seja
A justa saída
Do brejo dos erros.

Purificação Mariana de todos nós.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Lama




Que remédio
Se há descrença ?

Lava teu corpo.

Que jeito?
O homem é forte
Não sente a lágrima
Não suporta sentir.

Lava essa mágoa
Que é só entristecer...

Vê o silêncio
Sente esse grito!

Lava teu corpo
Tua alma
E teu espírito..

Que essa mágoa
É só entristecer.

23/12/1990.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Alarde



Não há graça no dia
Ou quem faça o meu sorriso
Ou perceba em meu olhar
Esse brilho estranho.

Não há
Qualquer fato em meu peito
Na cidade
Ou no mundo.

Tudo
Lá no fundo
É mistério triste
Rotundo.

Hoje no dia não há graça
Ou quem me faça tarde
Perceber em mim esse vazio
Qque trago em mim por ser sozinho.

Por ser alarde.

Rio, março de 2000.
João Mario Fleury Corrêa.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Do Tempo




Rasga o tempo a densa nuvem
Preciso o exato gemido de outrora.

Agora brotam rugas do chão
Como pegadas
Moldo-as sem saber se faço
Ou se acontece sempre assim.

Escondendo de mim
Duvidando de ser
Parecendo fim.

Rasgo o tempo eu mesmo
Correndo na praia
Abraçando o vento
Nariz erguido além-mar
Além estar.

Agorinha ainda
Pretendeu um velho brotar do chão
Mas foi pisado.

João Mario Fleury Corrêa
05/1996

Copyright.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Cego



Tarde a luz na poça tremula quando passa um vento, tento discernir que cheiros trazem. Não estou louco além do pouco que estava antes de meus pensamentos só pensarem nisso.

Tento desvendar que vozes ouço: me chamam gritos abafados pelo nome que não tive. Tarde a luz na poça me reflete o rosto. Gosto de brasa me queimando a linguarganta enquanto eu velho me torturo um tanto.

Ainda sangue sua de meus poros aqui e ali, aqui e ali me chamam vozes carregadas de desgraça, então disfarço. Não estou cego mais do que quando não me via.

sábado, 24 de julho de 2010

Violeta




Neste papel desbotado
Um poema
Um engulho
Carrega em si a alma
Do dia dezenove de julho.

No céu
Nem nuvem
A tarde estática
Tudo simples calmaria.

Nem um beijo principia
Ou ruído estranho
Ou trepidar de folhas
Tremulando o dia...

Nem um ato
Ou simulado toque
Ou casual contato:

A tarde é moça tímida
Dama sutil do tempo.

Nem vento
Que alvoroce os cabelos
Derrube as roupas dos varais
Leve ao cais
A maresia triste da saudade.

Tudo é simples e ingênua tarde.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Adeus na Tarde



Janela aberta ao mundo teu.
Respiro...

A tarde
Encharcada de eternidade
Deixa-se estar.

Risonhas nuvens
Tímidas
Coradas de um sol
Que em si se espelha.

Janela aberta ao mundo teu:
resisto.

Não há mistérios.
Não há segredos...

Apenas a tarde que encanta
Um efêmero vento
Carregado de saudade.

Um sorriso triste
Um adeus
na Tarde.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Vida Deserta


Fio de esperança
N'alma tardia

Coisa feia
Vida vazia...

-  Ninguém prevê sonho, seu moço...!

Apenas se sabe morto um dia.



João Mario 1988.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Banal



Bem-vindo um poema
Que cale o tormento
Que fale um momento
De cabeças erguidas...

Que estanque as feridas
De carne e de alma
Que fale de riso
Do que for preciso...

Qualquer poema
Que roube o marasmo
Que agrida esta tarde
E rompa o silêncio
Sem alarde.

Qualquer poema
Que fale em verdade
Mesmo que minta
Que nem sinta
Amor ou saudade.

Qualquer poema
barato
banal...
E fale de vida
De vida, afinal...!

João Mario Fleury Corrêa
Agosto, 1997.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Pertinácia



Quero quebrar
Um caco de vidro
Riscar na areia
Nomes
Que nem eu saberia...

Quero sentar
Deixar
O vento apagar
Deslizar sobre o feito
Sobre a cria...
E esperar
Que nada mais me saia assim.


06/01/1996

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Mezzo a Mezzo


Para Vinícius.


Esta tarde não é minha. Esses temores repentinos, essa agitação inesperada, a paisagem, o tremular das folhas bailando ao ritmo do vento desse dia, desse julho, nessa angustia e tudo mais que começa como calor e frio, certeza e medo, amor e ódio.

Não. Não é minha essa imprecisão de sentimentos, apesar de ter minha alma como abrigo e agora meu corpo doidivanas, antes ao bel-prazer das vontades exteriores, das corrupções irresistíveis, prazeres incomensuráveis e tão viciosos quanto efêmeros.

Não sou mais eu no mundo. Não são só meus passos, minha respiração, meu medo no começo da noite. Não é só minha descrença agora, ou minha crença na índole, no caráter, no respeito entre as pessoas. Não estou mais sozinho no universo. Então necessito aprender a ser dois. Acho que para isso preciso dominar o todo, controlar os defeitos e as virtudes, calar a força que conduz ao incerto, ao inesperado, à sorte. Abafar todo mal que possa ser transferido por admiração ou idolatria.

Vejo a vida que frutifica não por acaso, não por desejo ou influência de quem quer que seja, mas por mérito das partes que interessam. Vejo adiante meu filho, seus olhos são ainda meus e da mãe, seus braços, pernas, seu todo ser e estar é minha existência ainda e de sua mãe.

Imagino-me aquele ser, o que não é difícil, pois sou aquele ser ou metade dele. Imagino-me ele. E não adianta imaginar-me criança, pois viriam à tona lembranças que trago de agora. Misturas de fatos de antes, de hoje, de sonhos, de pensamentos, de desejos, alucinações normalíssimas em se tratando de gente.

Nada é lógico quando se é ainda quase nada e tudo ao mesmo tempo. Nada parece nos pertencer, pois não há noção de posse do mundo, pois o mundo ainda é o grande vazio que se experimenta, o início do nada, a sensação do novo comparada ao minuto imediatamente anterior, porquanto este é o parâmetro, o paradigma, o confrontamento único e possível de ser feito.

Minha relação com o mundo, meu canal direto está aqui. Na minha frente sua mãe oscila, parece bailar de tanta delicadeza. Pisa na ponta dos pés, age naturalmente, como se soubesse exatamente o que fazer. Como se há muito tempo soubesse exatamente que ali estaria, dia e hora, e que minha reação seria exatamente a que estou tendo. Que o brilho nos meus olhos nesse instante representaria a resposta para toda pergunta, a paz para toda aflição, a coragem para qualquer medo.

Minha relação com o mundo é linha tênue. Desfaz-se com facilidade, constrói-se da mesma forma. Carrega consigo a responsabilidade de ser o elo de ligação entre o hoje e o que virá, a sensação de tempo.

E só o tempo mesmo para compreender o que eu sinto agora, mezzo eu, mezzo ele, mistura salpicada de milagre, temperada com a esperança que remove qualquer indiferença, que faz brotar a fé como água boa do poço, que jorra na intensidade do sentimento nunca sentido, inexperiência maravilhosa de vida.

Essa tarde não é mesmo minha, esse corpo, essa alma, essa alegria infantil de viver. Nada me pertence, pois já não sou eu no mundo, não meus passos, não minha rápida respiração. Minha somente essa nova e extraordinária capacidade de amar.

João Mario Fleury Corrêa
Petrópolis, 22 de julho de 1999.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Nau



Sopro a branca vela: vida!
Um passo torto ensaio e caio.


Adiante um sonho
Atrás, ao lado, me disfarço e saio.

Conto em decepados dedos, demoradas horas.
Convivo dor e gôzo
E grito...

Se sei que perco o que não tenho ainda.

Contento-me em refazer caminhos
Abrigar-me em ninhos
Desligar-me os fios...

Que me guardam o corpo e que minha alma estranha.

sábado, 5 de junho de 2010

Colheita

Temer
Sem ter medo
Crer, sem acreditar...

Plantar e não colher
Viver por viver...


Buscar sem amar é perecer.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Gris



Frio...
Suo e seco ao sol.

Escorro toda fragilidade
Todo o mal.

Quase me engasgo
Com tanta coisa habitante em mim...

Por fim esse peso
De rolha retida
De nó na goela...

Nem sei se engulo
Ou cuspo
Essa tristeza
Que me percebe inteiro.

Migalha
Soprada
No chão...

Migalha esquecida no chão.

Quem sabe eu quis perder de vista
Toda essa angústia...

Toda essa coisa gris.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Tristeza Demais



Sentado aqui nesse cais
A vida me parece mais simples
Ouço a voz do vento
Percebo o que invento
Ao menos tento.

O problema é o mar
Diversidade de enigmas
Misteriosa brisa
De tempos ancestrais.

O problema é o mesmo
Desde Cabral
Vespúcio
Desde o anúncio
Que mudou o mundo.

Sentado aqui nesse cais
Como indagações sem respostas
Sinto o cheiro da brisa
Arrebatar-ma a paz...

Tristeza demais.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Instante


À noitinha ela vê a novela. Não tem sono, mas um quebranto lhe sobe o corpo e a adormece acordada. “Morta-viva”, pensa...

Estirada no sofá, ela não tem ânimo sequer para fechar a janela, logo que a chuva cai: deixa entrar o vento molhado e encharcar o Gobelin, sobre o qual pesa uma pequena mesa, que por sua vez sustenta uma ferida recente, estampada nos porta-retratos que, alheio, a fita.

Ele não deveria mesmo saber o mal que a causaria afastando-se assim e ela, segura, não quis chantageá-lo com emoções e resquícios de passado ou fotos na parede remontando antigas felicidades.

A decisão de sair devia ser tomada friamente, pensava, ou corria-se o risco de chafurdarem na mesmice do pão e manteiga e café e beijo na testa de bom-dia, na involuntariedade dos gestos que fazem do casamento a roda-viva dos conformados, na manutenção das aquisições que o tempo trás como teia e nos envolve a aguardar a aranha que nos imobilizará por inteiro e sugará nossos sucos mais secretos, nossa disposição para a mudança. Apesar da dor, ainda era isso que pensava.

Marcia vê a novela, mas é como se não visse. Em seus olhos parados refletem-se as imagens intermitentes da TV. Qualquer pessoa mais atenta saberia quais atores reverberavam-se, como Narciso e o lago, em seus olhos profundos de vazio.

Somente a chamada do comercial a faz emergir daquela hipnose letárgica. Num repente vê-se ali sentada, reconhece a solidão em que se transformou sua vida, de uma hora para outra, inesperadamente.

Levantou-se e deteve-se atrás da porta de uma grande estante. Seu corpo doloria de um peso de tempo incomum. No silêncio poderia escutar suas juntas e seus ossos estrilando como um monturo de ferro que se retorce e se acomoda no chão. É ainda jovem. Têm ainda atrativos, agora escondidos sob um manto de tristeza que a enfeia. Está mais velha e mais feia porquê agoniza junto de um amor construído com cuidado. Está vazia porquê sozinha na sala e no mundo, lamenta que o amor é dúbio e que não há sentir que vença um embate com a razão. Está ferida de morte pois tudo que aprendeu sobre felicidade não passa de fábula fácil e infundada.

De uma pequena caixa retirou fotos e as rasgou, uma a uma, entre lágrimas e recordações distantes. Fotos sempre a impressionaram, para ela continham mais que a estampa de um momento e não se restringiam a seus protagonistas. Todo um tempo estava ali guardado. Imaginava que se possível fosse mover a lente, ampliar o foco, viajaria pelo momento congelado, entraria nas casas, perceberia nos gestos e nas atitudes o dinamismo irresistível do estático.

Quantas felicidades escondiam-se em uma simples foto. Quantos momentos certamente serão eternos, pois eterna é a história. “O amor pode ser efêmero, mas o instante, definitivamente, é eterno”, pensou, em sua solidão e pensava na cama vazia e no prato solitário sobre a mesa e na angústia que engoliria, homeopáticamente, dali por diante.

Na cozinha fêz ovo e comeu. Na geladeira deixou que o ar gelado a resfriasse e a demovesse de idéias tolas. Na janela olhou o brilho dos faróis lá embaixo e as estrelas no céu e começou a perceber que entre o chão e o firmamento é que as felicidades se escondem e que, com o coração aberto e os pulmões dispostos, encontraria, quem sabe logo, mais uma.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Camões de Cueca - A Origem do Nome



Em 1999 escrevi uma crônica que narrava a estória de um recém-solteiro, livre na cidade do Rio de Janeiro por uma noite, tentando naquele dia realizar todas as proezas que não realizara em vinte anos de casamento. Esta crônica desapareceu em uma das muitas mudanças de residência que fiz posteriormente. Mas ficou a lembrança de que, em um dado momento, já chegando em casa após a noite da alforria, o protagonista sobe à mesa do zelador do prédio em que mora e, embriagado, recita Camões, vestindo apenas cuecas, num delírio insano, para escândalo dos demais moradores que, àquele horário já iniciavam suas rotinas matinais.

A crônica se perdeu, mas o nome sempre me marcou e achei sugestivo para batizar este blog.

Devo esclarecer então que não era Camões quem estava de cuecas, mas o protagonista dessa perdida crônica !

Em 1987 comprei em um sebo no Rio de Janeiro uma edição dos Lusíadas, que guardo com carinho até hoje e muito representa na minha vida.





sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Estupro



          No meio do nada o carro parou. “Desce”, ordenou ele. O homem era forte e fedia feito um porco.   Tobias não disse palavra. Abri a porta de trás do Monza e desci, trêmula.
          Estava escura a noite, a não ser pelo farol e pelas lâmpadas das casas ao longe, que tremeluziam como minúsculos vaga-lumes atordoados.
          Ali fiquei, paralisada, aguardando que o carro desaparecesse por detrás da encosta. Por alguns minutos distingui no silêncio o ruído do motor se extinguindo até que tudo se tornou novamente silêncio.
          Meu corpo todo doía e havia sangue seco nas minhas narinas e no canto da boca. Lentamente comecei a caminhar, em direção às luzes.
          Estava trôpega, talvez bela bebida, talvez pelo cansaço. Queria chorar, mas nem isso. Imagens não me saíam da cabeça, como flashes, picadas, distorcidas, não tudo... alguma coisa apenas, sexo, dor.
          Devia estar quase amanhecendo. A cidade ao longe, a distância. Talvez em duas ou três horas, nesse meu ritmo.
          Com a língua percebi que me faltava parte de um dente. Lembrar de tudo seria pior. Imagino o que fizeram, aqueles animais nojentos, me rasgaram ao meio, me forçaram por trás, despejaram no meu corpo aquela coisa imunda.
          Não posso cogitar polícia... não quero mais sofrimento, não quero outro estupro, não preciso que toquem meu corpo com pinças, procurando sinais ou rastros estranhos à minha intimidade. Meu corpo dói.
Enquanto ando, penso. Violaram minha carne mas não todo meu ser. Deviam ter me matado. Súbito um arrepio de medo. Por que não me mataram? Afinal, conheço Tobias da noite, sei onde se esconde aquele rato, o outro homem não, mas seria fácil chegar até ele e a outros como ele, que vivem em pocilgas, à espreita de oportunidades sórdidas.
          Por que diabos não me deram um tiro? Não haveria lembranças, nem essa dor que me lateja o sexo e desce pelas pernas e sobe pelas costas e mói meus seios mordidos com violência. Não haveria esse sangramento de alma, que dói mais do que qualquer hematoma, porque dilacera o que temos de mais íntimo, a nossa verdade íntegra, o que não é de mais ninguém.
          Caminho há meia hora e em meus pés já surgem bolhas, a cidade adiante e agora uma quase claridade vinda do dia que raia. A boca seca, o hálito de uísque ruim. Bebi muito, acho que me atirei nos braços de muitos homens, Tobias, o outro, não queria os dois, não faria com os dois.
          Tive medo, levei um murro, hotel de terceira, quarto 106, na rua barulho e buzina e gritos de bêbados.
          Algo enorme me rasgando e o suor do homem pingando em meu rosto e mais tapas e socos, aquele cheiro de sexo e desodorante ruim e Tobias por trás, a fronha mordida e o grito engolido, jamais com dois. Ventilador de teto, fumaça de tragada mal dada, apressada, e o último golpe de que me lembro, antes do carro, antes desta estrada que me leva à cidade, aos vaga-lumes já não tão atordoados.
          Por que não tiraram minha vida, minha Nossa Senhora, meu Santo Antônio...
          Por que não levaram essa vida desgraçada, junto com essas lembranças que hão de me perseguir sempre, como lagartixas perseguindo insetos, como insetos perseguindo luz.
          Súbito um ronco de motor, a luz na curva, mais forte, o Monza.
          Não corro, não posso, não tenho forças mais para nada, paro, a porta abre, o homem me aponta o cano, um tiro, dois, na cara. Tobias não disse palavra.

 

terça-feira, 18 de maio de 2010

Duas Panelas



Há duas panelas no fogo
E há saudade queimando no peito
E morte que ronda
Cozinhando um deus que prezo por medo.

Há um dedo de mim
No ato que falho...
Há um pouco de sal
Pimenta normal
Na vida que vivo, afinal.

Há duas panelas no fogo
Que nutro !
Uma ferve o leite que enoja
Outra a massa que engorda
Um desespero banal,

Banal.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Lamúria



Se eu gritasse
E me ouvisse
Tarde da noite me assombraria.

Se eu esquecesse
E me recordasse
Mesmo assim não me lembraria.

Se eu sumisse
E me achasse
Ainda assim não me encontraria.


João Mario Fleury Corrêa

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Naufrágio



Não sei o que faço
Não sei o que penso
Não sei por que temo.

Não agüento o desprezo
Não sei se reajo
Não vejo saídas.

Estou louco por dentro
Sou pouco por fora
Estou carne
Sou resto
Sou falho.

Estou louco por dentro
Por gula
Por fúria
De sede
E luxúria.

Receio minha alma
Meu elo com o mundo
Que nulo
Se bate
Se geme
E me afundo.

João Mario Fleury Corrêa

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Morte


Como se por aqui rastejasse tua ausência
Perturbadora sombra delineando frestas e cantos
Como se por aqui rastejasse
Possuída de um vazio sufocante
A ausência repugnante de ti.

Como se ainda me lambesse os olhos fechados
A espreitar algum brilho por detrás das pálpebras mortas

Como se ainda molhasse minha língua seca e inerte
Para que dissesse o sim fatal de uma prece
Para que tudo cesse como folhas imóveis ao vento em meio à tempestade
Para que tudo cale em meio a um grito de dor inaudível
Para que tudo seja sorriso na morte e na agonia do fim

Como se aqui rastejasse alguma ausência assim.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Go Back



          Decapite-me. A flor da minha lápide é vermelha ou roxa. Vi ou tenho sentido e, pôxa, não queria estar morto, não nessa noite de alguma expectativa e não mais o mero espanto comum que me vinha tanto.

          Rapte-me, a Dafne nem saiu da cama e não pode ver minha alma esvaída de mim, sobrevoando a cozinha, onde as latas vazias de cerveja e as garrafas secas de vinho repousam moribundas, estagnadas em seus fins previsíveis demais.

         Decapite-me ou fuzile-me, mas entenda: minha morte é uma garrafa vazia, mas virão outras, entornadas ou não, consumidas, desprezadas, digeridas, dominadas, recicladas.

          Minha morte é um Möet Chandon ou uma Coca-Cola, vazias pouco valem ou valem o mesmo: nada.

          Rapte-me a hora anterior, o momento antes do sono da morte, o último suor do amor e o apagar das luzes. Devolva-me à vida e me lance em seus braços, não prometo nada, não mudo nada, mas darei valor a cada instante, como nunca.

          Decapite-me, fuzile-me, trucide-me, aniquile-me, mas não deixe exposto meu rosto, meu corpo.

         Se ela acorda ? Ela chora se acorda, agarrado ao frio corpo intacto. Proponha-me um pacto, de voltar à vida ou não me proponha nada, mas não quero ver meu corpo nu enquanto minha alma paira aqui e acolá, em busca de vestígios, na porta, na borda dos copos, nas pontas de cigarro, no beijo enlouquecido do que terá acontecido.

          Fuzile-me, a mim e à minha alma para que nada seja resíduo, para que nada seja espera, para que nada seja ausência.

          Destroce-me, ou me deixe dormir, de volta, em mim.

João Mario Fleury Corrêa

domingo, 2 de maio de 2010

Metamorfose



Árida terra
Casebre gris
Pálida Cris:
Crisálida-inda.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Bilhete




          Não foi sonho.  Não dormia. Ao menos não me recordo de ter acordado ou sentido a vaga impressão estar dormindo...
          Então não dormia, pombas...!  Então foi tudo verdade...
Por isso essa febre que me invade e que quero achar motivo...
          Não tem tylenol que dê jeito nessa febre ou nessa ânsia ou nesse estado de coisas que se formou na minha cabeça e que lateja sempre, como se leves marteladas...
          "Lurdinha...". Esse nome ainda me vêm à mente, num turbilhão de imagens...
          "Lurdinha..." Esse nome não me é estranho, talvez nunca tenha sido estranho e, particularmente agora é tão familiar quanto os outros nomes que tenho em meu subconsciente e que certamente são de pessoas que me rodeiam e rodeiam minha cama, e esse lustre sobre meus olhos, e formam sutilmente esse manto de indagações em mim, do qual extraio toda confusão na qual me encontro e a loucura diáfana e translúcida que me impuseram.
          Loucura verdadeira.   E aí me vejo nesse quarto, extremamente vazio, a não ser por mim e por essas imagens que retenho, de alguma história perdida, de um momento passado que se dilui em detalhes e vai sumindo, escasseando, rareando, minguando, desaparecendo, tornando-se algo assim como um sonho mesmo ou quase um sonho - que tive - porém sei que não foi, pois tenho o cheiro e tenho gosto e vejo seu rosto quando fecho os olhos e seu sorriso por mim e aquele beijo mais longo e terno e os olhares se encontrando, naquela noite, em meio a gentes, algaravias, mixórdias indefinidas ou longínquas.
          "Lurdinha..."
          Tenho quase certeza de tudo e tudo vem agora, aos poucos, adentrando meu ser como uma encarnação qualquer de Afrodite ou Vênus ou mesmo Baco, dominando-me, ganhando-me, detendo-me.
          Onde encontrá-la, se já não sei seus passos ? Perdeu-se em algum canto, alguma brecha na cidade, de onde escapuliu, escorregou, cruzou as ruas mais distantes e não olhou para trás, subiu no ônibus, pegou o trem, perdeu-se na barca, evaporou na via expressa em meio a faróis e buzinas e a mesma pressa coletiva do mundo.
          E estou novamente sozinho, como sempre estive, com alguma agonia nova, uma angústia moderna de saudades imprecisas, querências adormecidas, queixumes e minhas violências sagradas, que me expõe ao mundo e pelas quais vivo.
          Ei...! mas tenho ainda esse papel amassado, que encontro agora em meu bolso... um bilhete esquecido, uma pequena esperança, um brilho em meus olhos que abro, e leio, à lápis: "me esquece."

João Mario Fleury Corrêa

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Resistir

O bom da vida é o drama
A trama bolada sobre o simples
O tempero barbecue sobre a alface insossa...
O ato em si de fazer força
Para ganhar o que se fez perdido
Para rir quando se foi ofendido
Para dar a outra face a quem te odeia....

O bom da vida é a teia
Emaranhado sutil de possibilidades
Idas-vindas
Vidas estanques
Palanques de nós mesmos aos sortilégios
Régios sentimentos de ser
Estar
Permanecer
Resistir um dia, dois
Para ver sem dor o que virá depois...

João Mario Fleury Corrêa

sábado, 24 de abril de 2010

Gênese



Um tempo
Anterior ao tempo
A que me refiro.

Anterior aos gregos
E aos romanos
Anterior aos humanos.

Um tempo em que noites calmas
De átomos
De almas
Anteviam frio e fogo.

Anterior ao limo
Ao lodo.

Um tempo idílico
Anterior a Adão
E a Eva
Anterior ao tempo bíblico.

Um tempo
Anterior ao tempo
A que me refiro.

Anterior à cor
E à paisagem
Um tempo perdido
Uma miragem...

Onde descobri
Depois do alvor
Antes da tarde
O nosso amor.

Anterior ao tempo
O tempo a que me refiro.

João Mario Fleury Corrêa

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Aborto



Minha boca uma palavra estranha
Como verso antigo
De amor maldito: sonha.

A carne entranha o corpo adentro
Grita o nome seco: morte!

Forte ainda inspira o cheiro morno
O frio contato meu, comigo.

Meus ouvidos ouvem meus gemidos surdos
Meu nariz fareja um cheiro de alma
Além tripas: hirtas.

Minha boca uma palavra arranha
Acanha vir ao mundo
Qual um ser imundo, aborto.

Minha boca uma palavra engulo.

João Mario Fleury Corrêa.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Camila

         
        "Nunca fui de suar muito", relembro em minha mente a frase tantas vezes pronunciada. E não suava, estranhamente. Podia jogar futebol, correr dois quilômetros ou simplesmente postar-me sob sol do meio-dia, indolentemente. Não suava. Nunca tive aquele brilho oleoso no rosto, de quem mora no Rio, a pele morena, as marcas molhadas sob o braço, o peito e as costas encharcadas, pela manhã.

          Penso naquela frase enquanto observo uma gota de suor, melindrosa, descer-me a testa, dobrando a curva do nariz, lentamente, e por alguns instantes pender na ponta, trêmula e brilhante, até despencar no chão.

          Seguindo-se a ela, outra, mais faceira, mais uma... preciso de um drink, rápido, um conhaque, uma genebra, e é o que faço. Abro o frigobar: cerveja clara, cerveja escura, genebra, vodka, suco de tomate, limão, gelo. Aparo o copo e despejo ali três dedos de uma vodka polonesa. Presente de Cristina. Presente de grego.

          Sinto o líquido gelado garganta abaixo, confrangendo-me os músculos, aguçando-me os sentidos imediatos, tato, paladar, até arder silenciosa, na boca do estômago vazio, onde uma gastrite vez por outra resmunga e se afoga.

          As mãos por um instante se acalmam, e podem pousar novamente sobre o teclado do computador. As palavras interrompidas, as frases inexatas, a pressa do parágrafo.

          Esse torpor precisa vir rápido, aquietar-me o senso, suavizar meu fôlego, instituir uma democracia em meus órgãos internos. Não penso em nada.

          Pela janela do oitavo andar observo Camila. Está nua de novo diante do espelho. Observa as curvas delicadas de seu corpo, toca seus seios com suavidade. É apenas uma menina num corpo de mulher.

          Novamente brincará com seu corpo, a mercê de um desejo inesgotável de exibir-se. Sabe que novamente estou ali, tenso e bêbado, a observar seus ritmos, sua aparição no meio do nada, nessa outra madrugada interminável em que me encolho no quarto apertado, suando um desejo indefinido.

          Nutro um desejo por Camila, que não explico. Como se ela e somente ela pudesse me fazer emergir do atoleiro em que me encontro. Sinto uma vontade imensa de amá-la, num dia qualquer. Um momento em que possa eclodir de mim uma virilidade que não mais possuo. Uma virilidade de vida. Camila não sabe que eu a amo, Camila não me conhece nem nunca vai conhecer.

          No sexto andar ainda há uma luz, escassa. Um homem vai à cozinha, abre a geladeira e bebe algo no gargalo de uma garrafa de vidro transparente. Certamente a mulher está longe. Não permitiria tal insulto à ordem das coisas. Deve estar dormindo, se existir.

          Minha mulher nunca permitiu que eu bebesse nada no gargalo. Nem que chegasse tarde, nem que bebesse com os amigos, nem que cheirasse a perfume barato, nem que olhasse para o lado. Minha mulher se foi faz tempo...

          Mas aparentemente ninguém está morrendo, apenas eu. Não há assassinos na noite, somente eu... só eu suicida-morto, distancio da minha verdade a cada gole e cada espera aumenta a ânsia de estar logo entregue. Nenhum grito de dor, só o meu, nenhuma aflição intensa, só a minha, nenhum câncer terminal, só eu, o cancro do quarto, do bairro, do mundo. Nas adjacências e reentrâncias das ruas, do bairro, até onde passo a vista, ninguém sofre como eu.

          Na estante, pouco acima de mim, vejo uma garrafa de anis, ainda fechada. Não sei como foi parar lá . Talvez tenha sido trazida por alguma das meninas. "Que gosto terá...?", penso. Já bebi de quase tudo, mas não lembro de ter bebido essa. Levanto-me com certa dificuldade e pego a garrafa. Um líquido azul oscila, suavemente, no interior de uma bela garrafa. Leio os dizeres no rótulo, cuidadosamente, como se fosse mesmo a bula de um remédio caro... termino de ler, giro a rosca e começo a sorvê-la pelo gargalo. Gosto de funcho. Funcho é um mato que tinha lá no mato de onde vim. Misturávamos com cachaça e bebíamos aquela porcaria.

          No porta-retratos a foto de meus filhos. Os sorrisos de meus filhos registrados num dia de sol há muito tempo. Dias de sol são cada vez mais raros... Onde estarão meus filhos...?

          Camila não está mais nua. Vestiu-se e foi dormir. Não há mais luzes acesas por lá... só eu, pálido ser, desprovido de qualquer bondade, resisto e bebo. Bebo tudo o que vejo, o que posso, o que agüento. Minha retina já não discerne os rótulos, somente as cores... não há beleza em nada, não há mais beleza em nada.

          Do chão vejo o teto girar, por sobre minha cabeça. "Segurem o teto...!" . Devo ter dormido uma, duas horas. Ainda escuro. Desde que cheguei está escuro, e tenho a impressão de ter chegado cedo. Lembro que suava. Depois de tanto tempo, suava como um porco, se é que porco sua. Lembro das pessoas oleosas... Tanto tempo escuro... tanta noite em mim, que devo estar morto. Devo ter morrido dormindo algum dia desses e estou no inferno. Sim, porque não vejo anjos, não vejo auras, não há ninguém no quarto vazio, além de garrafas vazias e um tapete de homem estendido a olhar o teto impreciso, a vida imprecisa, a hora estagnada. Acho que vou dormir mais um pouco. Camila, Camila...



terça-feira, 20 de abril de 2010

Dois Sorrisos


Há dois sorrisos em mim
Um que ri outro que chora.
Como o dia cinza lá fora
Que ora chove, ora apenas molha.

Tanto contam minha vida
Quanto escondem quem sou
Por vezes acatam amor
Outras exigem despedida.

Há dois sorrisos em mim
Um que ama outro que odeia
Como o dia cinza lá fora
Que ora gela, ora incendeia.

Há dois sorrisos em mim
Um de vida outro de morte
E o mesmo velho dia lá fora
A olhar de longe um triste fim.

Há dois sorrisos em mim...



João Mario Fleury Corrêa

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Poema Líquido




Uma poesia
Escorre
Líquida.
Rola na tua face
Como lágrima:
Angústia-lírica.

Circunavega
Trafega
Cantos e meios,
Rio tortuoso...

E enfim deságua
Perene
Mas cansada
Entre teus seios.

João Mario Fleury Corrêa

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O Porco e a Puta



O PORCO E A PUTA




          Tarde da noite e buzinas interrompendo o silêncio. Da fresta vejo a rua em slides, um murmúrio de indecência aliciando a calma, corrompendo a inércia: a puta beija o porco bem aqui embaixo, em troca algum troco, um quase nada suficiente não para massagear a dignidade, mas para mascarar a vergonha de não ser nada. A puta beija o porco podre de bêbado, que a troca, definitivamente, pela garrafa que lhe oferecerá ainda dois ou três goles antes de ser espatifada no asfalto. A puta adormecerá em qualquer canto, mendiga, até demoradamente recompor-se, ante o sol ardente e trágico que lhe trará de volta a vergonha.
A puta não é mais puta. Por breves instantes, enquanto tentar cobrir com trapos os seios cujos bicos se eriçam de frio, enquanto pensar nas feridas abertas no corpo e dentro de algo que parece alma, enquanto fechar a boca para frases feitas e engolir a violência de sua existência pífia e desgraçada.
          O porco ainda não se manifesta, pois nem o sol, nem o odor emanado de seu corpo e de suas vestes foi suficiente para removê-lo do chão duro e abrasivo. E nem a dor de suas vísceras se remoendo e tentando em vão expulsar da circulação o pouco de sangue que ainda lhe resta, imerso em álcool da pior qualidade, pode leva-lo a uma realidade tão desconhecida quanto distante.
          Não há um só momento de lucidez para o porco. Um minuto sequer em que se possa admitir que um resíduo de razão venha desencadear uma progressiva alteração de comportamento, uma remota luz, no fim do tortuoso túnel de sua vidinha demasiado simples. O porco é ainda porco, mesmo que durma, mesmo que sonhe maravilhas, por que o ímpeto de erguer-se do solo o levará de volta ao ciclo infindável da sua loucura.
O porco é ainda porco e não se comove com isso. É alheio ao mundo e mais alheio ainda a ele. E o mundo é alheio a ele também, pois é alheio a tudo a não ser ao estorvo. Então o porco passa a ser algo quando é estorvo. O porco só é gente, ou quase, quando incomoda, não por existir, mas por cruzar o caminho de alguém que, tragicamente é impelido a atravessar uma rua, desviar de calçada, prender a respiração, fazer mórbida caridade ou simplesmente fingir que sua presença não o importuna.
          O porco é ainda porco e nada mudará isso, pois essa é a imagem que ele próprio faz de si, mergulhado em suas infinitas frustrações de porco. Nada mudará isso, nem os favores da puta, nem o beijo doado pela puta, na noite indiferente, nem o som da garrafa estilhaçando no asfalto mais um dia e mais um porre sem dor.
          A puta sabe bem que essa é sua missão enquanto puta: fazer porcos sentirem-se menos porcos, fazer sonhos parecerem atingíveis, fazer mentiras serem um pouco reais. E quem sabe somos um pouco putas ou um pouco porcos ? Quem sabe aliviamos as dores dos outros com nossas mentiras ? Quem sabe nos entregamos sem querer, ou pior: não querendo. Quem sabe deixamos o cheiro de nossos medos nos subjugar e enterramos nossas cabeças tão fundo que seria difícil, a qualquer momento, desenterrá-las... Quem sabe nos recompomos ao sol de um novo dia e sob trapos escondemos nossas vergonhas, sem saber que elas inexistem, e justamente por isso não devemos nada a ninguém.
Não estou nem aí para o porco e pouco me importa se a puta se resfria sob o sereno da noite ou se definha dentro de um corpo magro de Aids. Tenho minhas putas em mim e já me amolam com obscenidades em horas impróprias. Tenho meus porcos que me torturam diariamente na esperança de dominarem meu corpo que resiste ainda e sempre. Todo esses cânceres me corroem, mas são meus e não vivo um minuto sem eles, assim como ninguém vive sem obscenidades e vícios, mais ou menos intensos, mais ou menos doentios.
A puta caminha na rua e escurece. O destino da puta é caminhar na rua e o do dia escurecer. Já não disfarça o mamilo em riste e sim a cara, num batom barato. falos de diversos tipos e tamanhos povoam seus pensamentos e ela quase gosta. Imagina-os chafurdados em seu corpo, entrando e saindo freneticamente de seus esgotos públicos. Imagina o que terá de beijar e lamber e engolir por um pão com mortadela e um refresco de qualquer coisa colorida e sem gosto. O que a atrai não é somente a possibilidade de não morrer de fome, mas o poder de dispor de sua carne e fazê-la estremecer num gozo proibido. Um sorriso se esboça em sua face, enquanto fita os porcos que emergem dos becos, dos bares, como ratos saídos dos bueiros, como miasmas sugados das tubulações pela noite sequiosa de cheiros.
          A puta foi feita para o porco. Completam-se. Na madrugada, como guizos, tilintam num gemido rouco e contido. Saciam-se com seus líquidos, alimentam-se de seus gostos, enquanto durar a fantasia do momento, nem um minuto a mais.
          Não estou nem aí para a puta ou para o porco, mas me incomoda a mesma garrafa, após o mesmo último gole, estilhaçando-se no asfalto frio da minha consciência.

João Mario Fleury Corrêa







quinta-feira, 11 de março de 2010

Velado



VELADO





As janelas das casas estão fechadas, não porque seja noite ou esteja frio, mas porquê João Cilento já não vive mais. Maria Cilento, Jordana, Tiago e Demerval são os únicos a velá-lo, além das velas e dum arrepio que paira sempre no silêncio e faz-nos encolher os joelhos e apertar as pernas, como sobressaltados com um medo estranho: Medo da morte.

No velório nem o Padre foi. Disse que por mal estar, mas a sapiência do povo diz que era por achar o homem coisa ruim, que não valesse nem o último adeus ou a prece derradeira.

Há quem diga que morreu de ruim que era. Dessas doenças que pegam e não deixam rastro nem aviso, porquê bala não lhe detia não. Já tinha entranhado no corpo mais de vinte. Bala de cabra pago, bala de homem traído, bala de mulher mordida. Uma lhe passou o pescoço, varando o outro lado sem pegar veia ou vaso que lhe comprometesse a vida. Homem de sorte. Dizem que enquanto engolia sangue retalhou o atirador com canivete de cortar cana. Depois sarou sozinho, sem doutor nem remédio.

Então por quê as janelas das casas estão fechadas ? Por quê as pessoas não estão nas ruas a maldizer a vida dos outros e a falar fiado ? Por quê na praça os velhos não jogam damas e na rua as crianças não correm atrás dos carros ou rodam piões ou embicam pipas coloridas ?

Afinal, João Cilento era homem de disposição severa, pessoa ingrata e má, por índole. Não há alma que o prezasse ou ser vivente que gozasse um minuto sequer de amenidade ao seu lado.

Mas na morte há um respeito diferente. Um receio geral, uma superstição incontrolável. A única certeza que temos, afinal.

Na circunstância lúgubre, no momento funesto, as pessoas incorporam um “ não sei o quê ” mórbido, como se comovidos pelo que, mais cedo ou mais tarde, lhes atingirá.

Maria Cilento, Jordana, Tiago e Demerval são os únicos a velá-lo. Postam-se lado a lado na sala fúnebre e nem palavra dizem. Mas em seus olhares há certa tristeza. Mesmo porquê nunca lhes faltou nada e com o tempo acostumaram-se com o jeito dele. Entreolhavam-se com uma certa culpa ou alívio, difícil discernir.

Agora ali, morto, era como se todo mal houvesse se esvaído e um manto de bondade pousasse sobre o caixão, concedendo, senão a João Cilento, mais aos demais o perdão pelos dias em que quase não suportaram a convivência com ele.

João certamente arde no fogo do inferno ou lugar que o valha, mas as consciências dos que ficaram lhe podem fornecer um último alento, uma saudade boa de sentir, um adeus cheio de vontade e uma esperança íntima de jamais, nem na outra vida mesmo, tornar a vê-lo.

João Mario Fleury Corrêa




quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A pele




A PELE



A pele em que me perco em sonho
Parca de contato
Até então a pele imaginária
É tua pele, à tarde, envolta em luz dourada...

A tua pele
Cujos poros emanam o meu amor transfigurado
E cujas curvas são portos distantes onde me abrigo
É meu refúgio e minha cruz.

A tua pele é nua e brilharia assim, mesmo sem luz.

A tua pele é nua e então me beija a boca com tua dor e tua recusa tênue
E quase choras quando toco teus seios, vendo-te além-olhos
E fundo em ti me entranho, corpo e alma misturados...

E, ante a calma vespertina, o ritmo alterado em teu peito a denuncia:
As falas mudas, os gemidos miúdos sussuram-se, entendem-se...
Acolhem-me no veio dessa paixão de horas antigas,
De tempo esquecido, de tardes idas, de nunca mais.

A tua pele dourada na tarde são minhas preces jamais ouvidas.

João Mario Fleury Corrêa

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Felicidade



Felicidade




Ele-cóptero. Não entendia. E o zuuuuuuum! Sobre sua cabeça passava em rasantes no parque, no sol, o pai, a mãe, o irmão.

Ele-Cóptero. De repente não mais aquilo o atendia. No chão uma trilha de formigas ia, vinha, carregando coisas pesadas, parecia. Seguia com os olhos até a árvore, onde subiam-desciam, alheias a ele e aos olhos que as viam, subindo, descendo, sem se importar.

O ruído cada vez mais longe, a mãe em seu vestido vermelhobranco, o pai fumando uma fumaça cinza, o irmão segurando o controle-remoto dele-cóptero. Foi se afastando e formigando a trilha das saúvas vermelho-fogo. Até onde iriam, teria fim?

Na cruz ilhada em meio à bifurcação da cerejeira esquecida e velha, seguiam ora para um lado, ora para outro, então não fazia mal algum subir um pouco e ver onde dava a interessante curva direitaesquerda, e assim fez, ninguém olhava, ninguém se importava.

As pernas pequenas-tortas eram hábeis, porém fracas de paralisia e o frio as anestesiava ainda mais, tanto que uma picada não sentiu, enquanto subia e via a trilha perder-se nos ramos mais altos.

Embaixo as cores das bolas difusas jogadas ao acaso eram cores menores, enquanto que acima rajadas de sol soltas tremeluziam folhas sob o vento sudoeste, amenizando o rubor da face antes branca e gélida de uma doença antiga chamada indiferença.

Esticou as juntas e o joelho foi atravessar a ponte que de um galho levava a outro. Assim foi golpeando o espaço e abrindo caminho, cada vez mais alto, seguindo as indas-vindas das formigas loucas. Até pôde ouvir seus ruídos, quando os ruídos de baixo não mais se faziam ouvir, de tão alto. Sibilavam como frestas entreabrindo-se e eram sons organizados que lembravam também discos antigos de vinil esgarçados pelo tempo.

De tão alto entrevia as pipas ziguezagueando num duelo aflito e de algodão as nuvens tão perto. Se esticasse os braços poderia quase tocá-las, desfazendo seus formatos engraçados de monstros e animais imensos, torna-los dóceis num desenho ameno, de sua criação.

Um pequeno buraco, acima e adiante entravam e saíam as formigas operárias. Poderia caber um dedo, se quisesse introduzi-lo, mas não quis, e ficou a admirar tamanha empreitada, enquanto a mãe vermelha e branca desesperava a sua procura em lugares longe de onde o cinza-pai indagava a um qualquer o seu sumiço amarelo.

Ele, o cóptero, aterrara de focinho na planície próxima e quente zunia seu estertor final de morte. Então o irmão olhou, acima, no alto, o metal brilhante de suas pernas se confundirem com os galhos mais altos e quis gritar, mudo de pavor, a voz que não saiu. Enquanto, tocada, a nuvem virava um anjo incorpóreo diante do sorriso autista, porém sincero.

Respirou profundo um ar intenso e puro e suas mãos desgarraram-se dos galhos, seus pés planaram no vento, seus pensamentos voaram longe, numa repentina e breve felicidade.

João Mario Fleury Corrêa
09/02/2010