quinta-feira, 11 de março de 2010

Velado



VELADO





As janelas das casas estão fechadas, não porque seja noite ou esteja frio, mas porquê João Cilento já não vive mais. Maria Cilento, Jordana, Tiago e Demerval são os únicos a velá-lo, além das velas e dum arrepio que paira sempre no silêncio e faz-nos encolher os joelhos e apertar as pernas, como sobressaltados com um medo estranho: Medo da morte.

No velório nem o Padre foi. Disse que por mal estar, mas a sapiência do povo diz que era por achar o homem coisa ruim, que não valesse nem o último adeus ou a prece derradeira.

Há quem diga que morreu de ruim que era. Dessas doenças que pegam e não deixam rastro nem aviso, porquê bala não lhe detia não. Já tinha entranhado no corpo mais de vinte. Bala de cabra pago, bala de homem traído, bala de mulher mordida. Uma lhe passou o pescoço, varando o outro lado sem pegar veia ou vaso que lhe comprometesse a vida. Homem de sorte. Dizem que enquanto engolia sangue retalhou o atirador com canivete de cortar cana. Depois sarou sozinho, sem doutor nem remédio.

Então por quê as janelas das casas estão fechadas ? Por quê as pessoas não estão nas ruas a maldizer a vida dos outros e a falar fiado ? Por quê na praça os velhos não jogam damas e na rua as crianças não correm atrás dos carros ou rodam piões ou embicam pipas coloridas ?

Afinal, João Cilento era homem de disposição severa, pessoa ingrata e má, por índole. Não há alma que o prezasse ou ser vivente que gozasse um minuto sequer de amenidade ao seu lado.

Mas na morte há um respeito diferente. Um receio geral, uma superstição incontrolável. A única certeza que temos, afinal.

Na circunstância lúgubre, no momento funesto, as pessoas incorporam um “ não sei o quê ” mórbido, como se comovidos pelo que, mais cedo ou mais tarde, lhes atingirá.

Maria Cilento, Jordana, Tiago e Demerval são os únicos a velá-lo. Postam-se lado a lado na sala fúnebre e nem palavra dizem. Mas em seus olhares há certa tristeza. Mesmo porquê nunca lhes faltou nada e com o tempo acostumaram-se com o jeito dele. Entreolhavam-se com uma certa culpa ou alívio, difícil discernir.

Agora ali, morto, era como se todo mal houvesse se esvaído e um manto de bondade pousasse sobre o caixão, concedendo, senão a João Cilento, mais aos demais o perdão pelos dias em que quase não suportaram a convivência com ele.

João certamente arde no fogo do inferno ou lugar que o valha, mas as consciências dos que ficaram lhe podem fornecer um último alento, uma saudade boa de sentir, um adeus cheio de vontade e uma esperança íntima de jamais, nem na outra vida mesmo, tornar a vê-lo.

João Mario Fleury Corrêa