quinta-feira, 29 de abril de 2010

Bilhete




          Não foi sonho.  Não dormia. Ao menos não me recordo de ter acordado ou sentido a vaga impressão estar dormindo...
          Então não dormia, pombas...!  Então foi tudo verdade...
Por isso essa febre que me invade e que quero achar motivo...
          Não tem tylenol que dê jeito nessa febre ou nessa ânsia ou nesse estado de coisas que se formou na minha cabeça e que lateja sempre, como se leves marteladas...
          "Lurdinha...". Esse nome ainda me vêm à mente, num turbilhão de imagens...
          "Lurdinha..." Esse nome não me é estranho, talvez nunca tenha sido estranho e, particularmente agora é tão familiar quanto os outros nomes que tenho em meu subconsciente e que certamente são de pessoas que me rodeiam e rodeiam minha cama, e esse lustre sobre meus olhos, e formam sutilmente esse manto de indagações em mim, do qual extraio toda confusão na qual me encontro e a loucura diáfana e translúcida que me impuseram.
          Loucura verdadeira.   E aí me vejo nesse quarto, extremamente vazio, a não ser por mim e por essas imagens que retenho, de alguma história perdida, de um momento passado que se dilui em detalhes e vai sumindo, escasseando, rareando, minguando, desaparecendo, tornando-se algo assim como um sonho mesmo ou quase um sonho - que tive - porém sei que não foi, pois tenho o cheiro e tenho gosto e vejo seu rosto quando fecho os olhos e seu sorriso por mim e aquele beijo mais longo e terno e os olhares se encontrando, naquela noite, em meio a gentes, algaravias, mixórdias indefinidas ou longínquas.
          "Lurdinha..."
          Tenho quase certeza de tudo e tudo vem agora, aos poucos, adentrando meu ser como uma encarnação qualquer de Afrodite ou Vênus ou mesmo Baco, dominando-me, ganhando-me, detendo-me.
          Onde encontrá-la, se já não sei seus passos ? Perdeu-se em algum canto, alguma brecha na cidade, de onde escapuliu, escorregou, cruzou as ruas mais distantes e não olhou para trás, subiu no ônibus, pegou o trem, perdeu-se na barca, evaporou na via expressa em meio a faróis e buzinas e a mesma pressa coletiva do mundo.
          E estou novamente sozinho, como sempre estive, com alguma agonia nova, uma angústia moderna de saudades imprecisas, querências adormecidas, queixumes e minhas violências sagradas, que me expõe ao mundo e pelas quais vivo.
          Ei...! mas tenho ainda esse papel amassado, que encontro agora em meu bolso... um bilhete esquecido, uma pequena esperança, um brilho em meus olhos que abro, e leio, à lápis: "me esquece."

João Mario Fleury Corrêa

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Resistir

O bom da vida é o drama
A trama bolada sobre o simples
O tempero barbecue sobre a alface insossa...
O ato em si de fazer força
Para ganhar o que se fez perdido
Para rir quando se foi ofendido
Para dar a outra face a quem te odeia....

O bom da vida é a teia
Emaranhado sutil de possibilidades
Idas-vindas
Vidas estanques
Palanques de nós mesmos aos sortilégios
Régios sentimentos de ser
Estar
Permanecer
Resistir um dia, dois
Para ver sem dor o que virá depois...

João Mario Fleury Corrêa

sábado, 24 de abril de 2010

Gênese



Um tempo
Anterior ao tempo
A que me refiro.

Anterior aos gregos
E aos romanos
Anterior aos humanos.

Um tempo em que noites calmas
De átomos
De almas
Anteviam frio e fogo.

Anterior ao limo
Ao lodo.

Um tempo idílico
Anterior a Adão
E a Eva
Anterior ao tempo bíblico.

Um tempo
Anterior ao tempo
A que me refiro.

Anterior à cor
E à paisagem
Um tempo perdido
Uma miragem...

Onde descobri
Depois do alvor
Antes da tarde
O nosso amor.

Anterior ao tempo
O tempo a que me refiro.

João Mario Fleury Corrêa

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Aborto



Minha boca uma palavra estranha
Como verso antigo
De amor maldito: sonha.

A carne entranha o corpo adentro
Grita o nome seco: morte!

Forte ainda inspira o cheiro morno
O frio contato meu, comigo.

Meus ouvidos ouvem meus gemidos surdos
Meu nariz fareja um cheiro de alma
Além tripas: hirtas.

Minha boca uma palavra arranha
Acanha vir ao mundo
Qual um ser imundo, aborto.

Minha boca uma palavra engulo.

João Mario Fleury Corrêa.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Camila

         
        "Nunca fui de suar muito", relembro em minha mente a frase tantas vezes pronunciada. E não suava, estranhamente. Podia jogar futebol, correr dois quilômetros ou simplesmente postar-me sob sol do meio-dia, indolentemente. Não suava. Nunca tive aquele brilho oleoso no rosto, de quem mora no Rio, a pele morena, as marcas molhadas sob o braço, o peito e as costas encharcadas, pela manhã.

          Penso naquela frase enquanto observo uma gota de suor, melindrosa, descer-me a testa, dobrando a curva do nariz, lentamente, e por alguns instantes pender na ponta, trêmula e brilhante, até despencar no chão.

          Seguindo-se a ela, outra, mais faceira, mais uma... preciso de um drink, rápido, um conhaque, uma genebra, e é o que faço. Abro o frigobar: cerveja clara, cerveja escura, genebra, vodka, suco de tomate, limão, gelo. Aparo o copo e despejo ali três dedos de uma vodka polonesa. Presente de Cristina. Presente de grego.

          Sinto o líquido gelado garganta abaixo, confrangendo-me os músculos, aguçando-me os sentidos imediatos, tato, paladar, até arder silenciosa, na boca do estômago vazio, onde uma gastrite vez por outra resmunga e se afoga.

          As mãos por um instante se acalmam, e podem pousar novamente sobre o teclado do computador. As palavras interrompidas, as frases inexatas, a pressa do parágrafo.

          Esse torpor precisa vir rápido, aquietar-me o senso, suavizar meu fôlego, instituir uma democracia em meus órgãos internos. Não penso em nada.

          Pela janela do oitavo andar observo Camila. Está nua de novo diante do espelho. Observa as curvas delicadas de seu corpo, toca seus seios com suavidade. É apenas uma menina num corpo de mulher.

          Novamente brincará com seu corpo, a mercê de um desejo inesgotável de exibir-se. Sabe que novamente estou ali, tenso e bêbado, a observar seus ritmos, sua aparição no meio do nada, nessa outra madrugada interminável em que me encolho no quarto apertado, suando um desejo indefinido.

          Nutro um desejo por Camila, que não explico. Como se ela e somente ela pudesse me fazer emergir do atoleiro em que me encontro. Sinto uma vontade imensa de amá-la, num dia qualquer. Um momento em que possa eclodir de mim uma virilidade que não mais possuo. Uma virilidade de vida. Camila não sabe que eu a amo, Camila não me conhece nem nunca vai conhecer.

          No sexto andar ainda há uma luz, escassa. Um homem vai à cozinha, abre a geladeira e bebe algo no gargalo de uma garrafa de vidro transparente. Certamente a mulher está longe. Não permitiria tal insulto à ordem das coisas. Deve estar dormindo, se existir.

          Minha mulher nunca permitiu que eu bebesse nada no gargalo. Nem que chegasse tarde, nem que bebesse com os amigos, nem que cheirasse a perfume barato, nem que olhasse para o lado. Minha mulher se foi faz tempo...

          Mas aparentemente ninguém está morrendo, apenas eu. Não há assassinos na noite, somente eu... só eu suicida-morto, distancio da minha verdade a cada gole e cada espera aumenta a ânsia de estar logo entregue. Nenhum grito de dor, só o meu, nenhuma aflição intensa, só a minha, nenhum câncer terminal, só eu, o cancro do quarto, do bairro, do mundo. Nas adjacências e reentrâncias das ruas, do bairro, até onde passo a vista, ninguém sofre como eu.

          Na estante, pouco acima de mim, vejo uma garrafa de anis, ainda fechada. Não sei como foi parar lá . Talvez tenha sido trazida por alguma das meninas. "Que gosto terá...?", penso. Já bebi de quase tudo, mas não lembro de ter bebido essa. Levanto-me com certa dificuldade e pego a garrafa. Um líquido azul oscila, suavemente, no interior de uma bela garrafa. Leio os dizeres no rótulo, cuidadosamente, como se fosse mesmo a bula de um remédio caro... termino de ler, giro a rosca e começo a sorvê-la pelo gargalo. Gosto de funcho. Funcho é um mato que tinha lá no mato de onde vim. Misturávamos com cachaça e bebíamos aquela porcaria.

          No porta-retratos a foto de meus filhos. Os sorrisos de meus filhos registrados num dia de sol há muito tempo. Dias de sol são cada vez mais raros... Onde estarão meus filhos...?

          Camila não está mais nua. Vestiu-se e foi dormir. Não há mais luzes acesas por lá... só eu, pálido ser, desprovido de qualquer bondade, resisto e bebo. Bebo tudo o que vejo, o que posso, o que agüento. Minha retina já não discerne os rótulos, somente as cores... não há beleza em nada, não há mais beleza em nada.

          Do chão vejo o teto girar, por sobre minha cabeça. "Segurem o teto...!" . Devo ter dormido uma, duas horas. Ainda escuro. Desde que cheguei está escuro, e tenho a impressão de ter chegado cedo. Lembro que suava. Depois de tanto tempo, suava como um porco, se é que porco sua. Lembro das pessoas oleosas... Tanto tempo escuro... tanta noite em mim, que devo estar morto. Devo ter morrido dormindo algum dia desses e estou no inferno. Sim, porque não vejo anjos, não vejo auras, não há ninguém no quarto vazio, além de garrafas vazias e um tapete de homem estendido a olhar o teto impreciso, a vida imprecisa, a hora estagnada. Acho que vou dormir mais um pouco. Camila, Camila...



terça-feira, 20 de abril de 2010

Dois Sorrisos


Há dois sorrisos em mim
Um que ri outro que chora.
Como o dia cinza lá fora
Que ora chove, ora apenas molha.

Tanto contam minha vida
Quanto escondem quem sou
Por vezes acatam amor
Outras exigem despedida.

Há dois sorrisos em mim
Um que ama outro que odeia
Como o dia cinza lá fora
Que ora gela, ora incendeia.

Há dois sorrisos em mim
Um de vida outro de morte
E o mesmo velho dia lá fora
A olhar de longe um triste fim.

Há dois sorrisos em mim...



João Mario Fleury Corrêa

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Poema Líquido




Uma poesia
Escorre
Líquida.
Rola na tua face
Como lágrima:
Angústia-lírica.

Circunavega
Trafega
Cantos e meios,
Rio tortuoso...

E enfim deságua
Perene
Mas cansada
Entre teus seios.

João Mario Fleury Corrêa

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O Porco e a Puta



O PORCO E A PUTA




          Tarde da noite e buzinas interrompendo o silêncio. Da fresta vejo a rua em slides, um murmúrio de indecência aliciando a calma, corrompendo a inércia: a puta beija o porco bem aqui embaixo, em troca algum troco, um quase nada suficiente não para massagear a dignidade, mas para mascarar a vergonha de não ser nada. A puta beija o porco podre de bêbado, que a troca, definitivamente, pela garrafa que lhe oferecerá ainda dois ou três goles antes de ser espatifada no asfalto. A puta adormecerá em qualquer canto, mendiga, até demoradamente recompor-se, ante o sol ardente e trágico que lhe trará de volta a vergonha.
A puta não é mais puta. Por breves instantes, enquanto tentar cobrir com trapos os seios cujos bicos se eriçam de frio, enquanto pensar nas feridas abertas no corpo e dentro de algo que parece alma, enquanto fechar a boca para frases feitas e engolir a violência de sua existência pífia e desgraçada.
          O porco ainda não se manifesta, pois nem o sol, nem o odor emanado de seu corpo e de suas vestes foi suficiente para removê-lo do chão duro e abrasivo. E nem a dor de suas vísceras se remoendo e tentando em vão expulsar da circulação o pouco de sangue que ainda lhe resta, imerso em álcool da pior qualidade, pode leva-lo a uma realidade tão desconhecida quanto distante.
          Não há um só momento de lucidez para o porco. Um minuto sequer em que se possa admitir que um resíduo de razão venha desencadear uma progressiva alteração de comportamento, uma remota luz, no fim do tortuoso túnel de sua vidinha demasiado simples. O porco é ainda porco, mesmo que durma, mesmo que sonhe maravilhas, por que o ímpeto de erguer-se do solo o levará de volta ao ciclo infindável da sua loucura.
O porco é ainda porco e não se comove com isso. É alheio ao mundo e mais alheio ainda a ele. E o mundo é alheio a ele também, pois é alheio a tudo a não ser ao estorvo. Então o porco passa a ser algo quando é estorvo. O porco só é gente, ou quase, quando incomoda, não por existir, mas por cruzar o caminho de alguém que, tragicamente é impelido a atravessar uma rua, desviar de calçada, prender a respiração, fazer mórbida caridade ou simplesmente fingir que sua presença não o importuna.
          O porco é ainda porco e nada mudará isso, pois essa é a imagem que ele próprio faz de si, mergulhado em suas infinitas frustrações de porco. Nada mudará isso, nem os favores da puta, nem o beijo doado pela puta, na noite indiferente, nem o som da garrafa estilhaçando no asfalto mais um dia e mais um porre sem dor.
          A puta sabe bem que essa é sua missão enquanto puta: fazer porcos sentirem-se menos porcos, fazer sonhos parecerem atingíveis, fazer mentiras serem um pouco reais. E quem sabe somos um pouco putas ou um pouco porcos ? Quem sabe aliviamos as dores dos outros com nossas mentiras ? Quem sabe nos entregamos sem querer, ou pior: não querendo. Quem sabe deixamos o cheiro de nossos medos nos subjugar e enterramos nossas cabeças tão fundo que seria difícil, a qualquer momento, desenterrá-las... Quem sabe nos recompomos ao sol de um novo dia e sob trapos escondemos nossas vergonhas, sem saber que elas inexistem, e justamente por isso não devemos nada a ninguém.
Não estou nem aí para o porco e pouco me importa se a puta se resfria sob o sereno da noite ou se definha dentro de um corpo magro de Aids. Tenho minhas putas em mim e já me amolam com obscenidades em horas impróprias. Tenho meus porcos que me torturam diariamente na esperança de dominarem meu corpo que resiste ainda e sempre. Todo esses cânceres me corroem, mas são meus e não vivo um minuto sem eles, assim como ninguém vive sem obscenidades e vícios, mais ou menos intensos, mais ou menos doentios.
A puta caminha na rua e escurece. O destino da puta é caminhar na rua e o do dia escurecer. Já não disfarça o mamilo em riste e sim a cara, num batom barato. falos de diversos tipos e tamanhos povoam seus pensamentos e ela quase gosta. Imagina-os chafurdados em seu corpo, entrando e saindo freneticamente de seus esgotos públicos. Imagina o que terá de beijar e lamber e engolir por um pão com mortadela e um refresco de qualquer coisa colorida e sem gosto. O que a atrai não é somente a possibilidade de não morrer de fome, mas o poder de dispor de sua carne e fazê-la estremecer num gozo proibido. Um sorriso se esboça em sua face, enquanto fita os porcos que emergem dos becos, dos bares, como ratos saídos dos bueiros, como miasmas sugados das tubulações pela noite sequiosa de cheiros.
          A puta foi feita para o porco. Completam-se. Na madrugada, como guizos, tilintam num gemido rouco e contido. Saciam-se com seus líquidos, alimentam-se de seus gostos, enquanto durar a fantasia do momento, nem um minuto a mais.
          Não estou nem aí para a puta ou para o porco, mas me incomoda a mesma garrafa, após o mesmo último gole, estilhaçando-se no asfalto frio da minha consciência.

João Mario Fleury Corrêa