quinta-feira, 22 de abril de 2010

Camila

         
        "Nunca fui de suar muito", relembro em minha mente a frase tantas vezes pronunciada. E não suava, estranhamente. Podia jogar futebol, correr dois quilômetros ou simplesmente postar-me sob sol do meio-dia, indolentemente. Não suava. Nunca tive aquele brilho oleoso no rosto, de quem mora no Rio, a pele morena, as marcas molhadas sob o braço, o peito e as costas encharcadas, pela manhã.

          Penso naquela frase enquanto observo uma gota de suor, melindrosa, descer-me a testa, dobrando a curva do nariz, lentamente, e por alguns instantes pender na ponta, trêmula e brilhante, até despencar no chão.

          Seguindo-se a ela, outra, mais faceira, mais uma... preciso de um drink, rápido, um conhaque, uma genebra, e é o que faço. Abro o frigobar: cerveja clara, cerveja escura, genebra, vodka, suco de tomate, limão, gelo. Aparo o copo e despejo ali três dedos de uma vodka polonesa. Presente de Cristina. Presente de grego.

          Sinto o líquido gelado garganta abaixo, confrangendo-me os músculos, aguçando-me os sentidos imediatos, tato, paladar, até arder silenciosa, na boca do estômago vazio, onde uma gastrite vez por outra resmunga e se afoga.

          As mãos por um instante se acalmam, e podem pousar novamente sobre o teclado do computador. As palavras interrompidas, as frases inexatas, a pressa do parágrafo.

          Esse torpor precisa vir rápido, aquietar-me o senso, suavizar meu fôlego, instituir uma democracia em meus órgãos internos. Não penso em nada.

          Pela janela do oitavo andar observo Camila. Está nua de novo diante do espelho. Observa as curvas delicadas de seu corpo, toca seus seios com suavidade. É apenas uma menina num corpo de mulher.

          Novamente brincará com seu corpo, a mercê de um desejo inesgotável de exibir-se. Sabe que novamente estou ali, tenso e bêbado, a observar seus ritmos, sua aparição no meio do nada, nessa outra madrugada interminável em que me encolho no quarto apertado, suando um desejo indefinido.

          Nutro um desejo por Camila, que não explico. Como se ela e somente ela pudesse me fazer emergir do atoleiro em que me encontro. Sinto uma vontade imensa de amá-la, num dia qualquer. Um momento em que possa eclodir de mim uma virilidade que não mais possuo. Uma virilidade de vida. Camila não sabe que eu a amo, Camila não me conhece nem nunca vai conhecer.

          No sexto andar ainda há uma luz, escassa. Um homem vai à cozinha, abre a geladeira e bebe algo no gargalo de uma garrafa de vidro transparente. Certamente a mulher está longe. Não permitiria tal insulto à ordem das coisas. Deve estar dormindo, se existir.

          Minha mulher nunca permitiu que eu bebesse nada no gargalo. Nem que chegasse tarde, nem que bebesse com os amigos, nem que cheirasse a perfume barato, nem que olhasse para o lado. Minha mulher se foi faz tempo...

          Mas aparentemente ninguém está morrendo, apenas eu. Não há assassinos na noite, somente eu... só eu suicida-morto, distancio da minha verdade a cada gole e cada espera aumenta a ânsia de estar logo entregue. Nenhum grito de dor, só o meu, nenhuma aflição intensa, só a minha, nenhum câncer terminal, só eu, o cancro do quarto, do bairro, do mundo. Nas adjacências e reentrâncias das ruas, do bairro, até onde passo a vista, ninguém sofre como eu.

          Na estante, pouco acima de mim, vejo uma garrafa de anis, ainda fechada. Não sei como foi parar lá . Talvez tenha sido trazida por alguma das meninas. "Que gosto terá...?", penso. Já bebi de quase tudo, mas não lembro de ter bebido essa. Levanto-me com certa dificuldade e pego a garrafa. Um líquido azul oscila, suavemente, no interior de uma bela garrafa. Leio os dizeres no rótulo, cuidadosamente, como se fosse mesmo a bula de um remédio caro... termino de ler, giro a rosca e começo a sorvê-la pelo gargalo. Gosto de funcho. Funcho é um mato que tinha lá no mato de onde vim. Misturávamos com cachaça e bebíamos aquela porcaria.

          No porta-retratos a foto de meus filhos. Os sorrisos de meus filhos registrados num dia de sol há muito tempo. Dias de sol são cada vez mais raros... Onde estarão meus filhos...?

          Camila não está mais nua. Vestiu-se e foi dormir. Não há mais luzes acesas por lá... só eu, pálido ser, desprovido de qualquer bondade, resisto e bebo. Bebo tudo o que vejo, o que posso, o que agüento. Minha retina já não discerne os rótulos, somente as cores... não há beleza em nada, não há mais beleza em nada.

          Do chão vejo o teto girar, por sobre minha cabeça. "Segurem o teto...!" . Devo ter dormido uma, duas horas. Ainda escuro. Desde que cheguei está escuro, e tenho a impressão de ter chegado cedo. Lembro que suava. Depois de tanto tempo, suava como um porco, se é que porco sua. Lembro das pessoas oleosas... Tanto tempo escuro... tanta noite em mim, que devo estar morto. Devo ter morrido dormindo algum dia desses e estou no inferno. Sim, porque não vejo anjos, não vejo auras, não há ninguém no quarto vazio, além de garrafas vazias e um tapete de homem estendido a olhar o teto impreciso, a vida imprecisa, a hora estagnada. Acho que vou dormir mais um pouco. Camila, Camila...



5 comentários:

  1. Texto maravilhoso, quase que nos leva à presença da bela Camila, quase que nos inebria, quase nos faz pálidos e tensos tão minuciosas são as descrições... Parabéns, João Mário... Estou gostando muito do seu blog e sinto-me privilegiado por estar acompanhando tamanho talento. Grande abraço!

    ResponderExcluir
  2. NOSSA PROFUNDO ADOREI!
    ALÉM DE OTIMO COZINHEIRO AGORA SE REVELA UM EXCELENTE POETA!!!
    BJIM

    ResponderExcluir
  3. Maravilhosamente descritivo...parece que estou sentada no braço do sofá deste apartamento tão sombrio...observando este triste, solitário e desolado ser...

    Talentoso,parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Senti-me no lugar do observador. As palavras, colocadas poeticamente, transformaram o irreal em real.

    Parabéns!!

    ResponderExcluir