sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Estupro



          No meio do nada o carro parou. “Desce”, ordenou ele. O homem era forte e fedia feito um porco.   Tobias não disse palavra. Abri a porta de trás do Monza e desci, trêmula.
          Estava escura a noite, a não ser pelo farol e pelas lâmpadas das casas ao longe, que tremeluziam como minúsculos vaga-lumes atordoados.
          Ali fiquei, paralisada, aguardando que o carro desaparecesse por detrás da encosta. Por alguns minutos distingui no silêncio o ruído do motor se extinguindo até que tudo se tornou novamente silêncio.
          Meu corpo todo doía e havia sangue seco nas minhas narinas e no canto da boca. Lentamente comecei a caminhar, em direção às luzes.
          Estava trôpega, talvez bela bebida, talvez pelo cansaço. Queria chorar, mas nem isso. Imagens não me saíam da cabeça, como flashes, picadas, distorcidas, não tudo... alguma coisa apenas, sexo, dor.
          Devia estar quase amanhecendo. A cidade ao longe, a distância. Talvez em duas ou três horas, nesse meu ritmo.
          Com a língua percebi que me faltava parte de um dente. Lembrar de tudo seria pior. Imagino o que fizeram, aqueles animais nojentos, me rasgaram ao meio, me forçaram por trás, despejaram no meu corpo aquela coisa imunda.
          Não posso cogitar polícia... não quero mais sofrimento, não quero outro estupro, não preciso que toquem meu corpo com pinças, procurando sinais ou rastros estranhos à minha intimidade. Meu corpo dói.
Enquanto ando, penso. Violaram minha carne mas não todo meu ser. Deviam ter me matado. Súbito um arrepio de medo. Por que não me mataram? Afinal, conheço Tobias da noite, sei onde se esconde aquele rato, o outro homem não, mas seria fácil chegar até ele e a outros como ele, que vivem em pocilgas, à espreita de oportunidades sórdidas.
          Por que diabos não me deram um tiro? Não haveria lembranças, nem essa dor que me lateja o sexo e desce pelas pernas e sobe pelas costas e mói meus seios mordidos com violência. Não haveria esse sangramento de alma, que dói mais do que qualquer hematoma, porque dilacera o que temos de mais íntimo, a nossa verdade íntegra, o que não é de mais ninguém.
          Caminho há meia hora e em meus pés já surgem bolhas, a cidade adiante e agora uma quase claridade vinda do dia que raia. A boca seca, o hálito de uísque ruim. Bebi muito, acho que me atirei nos braços de muitos homens, Tobias, o outro, não queria os dois, não faria com os dois.
          Tive medo, levei um murro, hotel de terceira, quarto 106, na rua barulho e buzina e gritos de bêbados.
          Algo enorme me rasgando e o suor do homem pingando em meu rosto e mais tapas e socos, aquele cheiro de sexo e desodorante ruim e Tobias por trás, a fronha mordida e o grito engolido, jamais com dois. Ventilador de teto, fumaça de tragada mal dada, apressada, e o último golpe de que me lembro, antes do carro, antes desta estrada que me leva à cidade, aos vaga-lumes já não tão atordoados.
          Por que não tiraram minha vida, minha Nossa Senhora, meu Santo Antônio...
          Por que não levaram essa vida desgraçada, junto com essas lembranças que hão de me perseguir sempre, como lagartixas perseguindo insetos, como insetos perseguindo luz.
          Súbito um ronco de motor, a luz na curva, mais forte, o Monza.
          Não corro, não posso, não tenho forças mais para nada, paro, a porta abre, o homem me aponta o cano, um tiro, dois, na cara. Tobias não disse palavra.

 

4 comentários:

  1. Rapaz, que texto forte... Que situação delicada, perturbadora... Descrições minuciosas, capazes de provocar sensações de repúdio e pena...

    Cada vez mais admiro seu modo de escrever, João...

    Forte abraço!

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  2. Salve garoto!
    É um texto forte - tudo muito humano - e até lirico.(fazer o que? Somos assim).
    Voce escreve em "tons" vinho,framboesa,blueberry...
    Gosto muito!
    Saudações pantaneiras

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  3. Nossa, impossível não sentir toda essa dor!

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  4. Meu Amigo
    O nome deste blog despertou a minha curiosidade...e vim ver! Não encontrei as cuecas do Camões ( será que ele as usava?) mas deparei-me com um texto bem escrito, um pouco forte mas muito humano.
    Ficarei por aqui..
    beijo
    Graça

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