quarta-feira, 26 de maio de 2010

Instante


À noitinha ela vê a novela. Não tem sono, mas um quebranto lhe sobe o corpo e a adormece acordada. “Morta-viva”, pensa...

Estirada no sofá, ela não tem ânimo sequer para fechar a janela, logo que a chuva cai: deixa entrar o vento molhado e encharcar o Gobelin, sobre o qual pesa uma pequena mesa, que por sua vez sustenta uma ferida recente, estampada nos porta-retratos que, alheio, a fita.

Ele não deveria mesmo saber o mal que a causaria afastando-se assim e ela, segura, não quis chantageá-lo com emoções e resquícios de passado ou fotos na parede remontando antigas felicidades.

A decisão de sair devia ser tomada friamente, pensava, ou corria-se o risco de chafurdarem na mesmice do pão e manteiga e café e beijo na testa de bom-dia, na involuntariedade dos gestos que fazem do casamento a roda-viva dos conformados, na manutenção das aquisições que o tempo trás como teia e nos envolve a aguardar a aranha que nos imobilizará por inteiro e sugará nossos sucos mais secretos, nossa disposição para a mudança. Apesar da dor, ainda era isso que pensava.

Marcia vê a novela, mas é como se não visse. Em seus olhos parados refletem-se as imagens intermitentes da TV. Qualquer pessoa mais atenta saberia quais atores reverberavam-se, como Narciso e o lago, em seus olhos profundos de vazio.

Somente a chamada do comercial a faz emergir daquela hipnose letárgica. Num repente vê-se ali sentada, reconhece a solidão em que se transformou sua vida, de uma hora para outra, inesperadamente.

Levantou-se e deteve-se atrás da porta de uma grande estante. Seu corpo doloria de um peso de tempo incomum. No silêncio poderia escutar suas juntas e seus ossos estrilando como um monturo de ferro que se retorce e se acomoda no chão. É ainda jovem. Têm ainda atrativos, agora escondidos sob um manto de tristeza que a enfeia. Está mais velha e mais feia porquê agoniza junto de um amor construído com cuidado. Está vazia porquê sozinha na sala e no mundo, lamenta que o amor é dúbio e que não há sentir que vença um embate com a razão. Está ferida de morte pois tudo que aprendeu sobre felicidade não passa de fábula fácil e infundada.

De uma pequena caixa retirou fotos e as rasgou, uma a uma, entre lágrimas e recordações distantes. Fotos sempre a impressionaram, para ela continham mais que a estampa de um momento e não se restringiam a seus protagonistas. Todo um tempo estava ali guardado. Imaginava que se possível fosse mover a lente, ampliar o foco, viajaria pelo momento congelado, entraria nas casas, perceberia nos gestos e nas atitudes o dinamismo irresistível do estático.

Quantas felicidades escondiam-se em uma simples foto. Quantos momentos certamente serão eternos, pois eterna é a história. “O amor pode ser efêmero, mas o instante, definitivamente, é eterno”, pensou, em sua solidão e pensava na cama vazia e no prato solitário sobre a mesa e na angústia que engoliria, homeopáticamente, dali por diante.

Na cozinha fêz ovo e comeu. Na geladeira deixou que o ar gelado a resfriasse e a demovesse de idéias tolas. Na janela olhou o brilho dos faróis lá embaixo e as estrelas no céu e começou a perceber que entre o chão e o firmamento é que as felicidades se escondem e que, com o coração aberto e os pulmões dispostos, encontraria, quem sabe logo, mais uma.


2 comentários:

  1. Quantas pessoas podem estar se sentindo assim nesse exato momento? Rasgando fotos pra que não sobrem recordações do que já não exite mais...Guardando a vida na geladeira, na esperança de poder saboreá-la mais tarde...será?

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  2. Bom dia!
    Recordações, solidão...
    Um cenário diário de muitas vidas.
    Belíssimo texto.
    Vim retribuir sua preciosa presença em meu jardim e também te sigo.
    Tenha um dia especial.
    Com carinho, Lady.

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