terça-feira, 4 de maio de 2010

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          Decapite-me. A flor da minha lápide é vermelha ou roxa. Vi ou tenho sentido e, pôxa, não queria estar morto, não nessa noite de alguma expectativa e não mais o mero espanto comum que me vinha tanto.

          Rapte-me, a Dafne nem saiu da cama e não pode ver minha alma esvaída de mim, sobrevoando a cozinha, onde as latas vazias de cerveja e as garrafas secas de vinho repousam moribundas, estagnadas em seus fins previsíveis demais.

         Decapite-me ou fuzile-me, mas entenda: minha morte é uma garrafa vazia, mas virão outras, entornadas ou não, consumidas, desprezadas, digeridas, dominadas, recicladas.

          Minha morte é um Möet Chandon ou uma Coca-Cola, vazias pouco valem ou valem o mesmo: nada.

          Rapte-me a hora anterior, o momento antes do sono da morte, o último suor do amor e o apagar das luzes. Devolva-me à vida e me lance em seus braços, não prometo nada, não mudo nada, mas darei valor a cada instante, como nunca.

          Decapite-me, fuzile-me, trucide-me, aniquile-me, mas não deixe exposto meu rosto, meu corpo.

         Se ela acorda ? Ela chora se acorda, agarrado ao frio corpo intacto. Proponha-me um pacto, de voltar à vida ou não me proponha nada, mas não quero ver meu corpo nu enquanto minha alma paira aqui e acolá, em busca de vestígios, na porta, na borda dos copos, nas pontas de cigarro, no beijo enlouquecido do que terá acontecido.

          Fuzile-me, a mim e à minha alma para que nada seja resíduo, para que nada seja espera, para que nada seja ausência.

          Destroce-me, ou me deixe dormir, de volta, em mim.

João Mario Fleury Corrêa

Um comentário:

  1. Olá, João Mário... Achei interessante essa mescla de verso e prosa que você utilizou nesse texto. Diria que se trata de um estilo incomum, porém atraente. Você já publicou algum livro? Pergunto pois é possuidor de um grande talento. Estou recomendando seus blogs num dos posts publicados lá no "Memorial de Outono". Também citei o "Camões de Cueca" à poetisa Úrsula Avner, cujos blogs estou acompanhando. Acredito que aquilo que é de bom gosto deve ser compartilhado com outros. Grande abraço, companheiro...

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