À noitinha ela vê a novela. Não tem sono, mas um quebranto lhe sobe o corpo e a adormece acordada. “Morta-viva”, pensa...
Estirada no sofá, ela não tem ânimo sequer para fechar a janela, logo que a chuva cai: deixa entrar o vento molhado e encharcar o Gobelin, sobre o qual pesa uma pequena mesa, que por sua vez sustenta uma ferida recente, estampada nos porta-retratos que, alheio, a fita.
Ele não deveria mesmo saber o mal que a causaria afastando-se assim e ela, segura, não quis chantageá-lo com emoções e resquícios de passado ou fotos na parede remontando antigas felicidades.
A decisão de sair devia ser tomada friamente, pensava, ou corria-se o risco de chafurdarem na mesmice do pão e manteiga e café e beijo na testa de bom-dia, na involuntariedade dos gestos que fazem do casamento a roda-viva dos conformados, na manutenção das aquisições que o tempo trás como teia e nos envolve a aguardar a aranha que nos imobilizará por inteiro e sugará nossos sucos mais secretos, nossa disposição para a mudança. Apesar da dor, ainda era isso que pensava.
Marcia vê a novela, mas é como se não visse. Em seus olhos parados refletem-se as imagens intermitentes da TV. Qualquer pessoa mais atenta saberia quais atores reverberavam-se, como Narciso e o lago, em seus olhos profundos de vazio.
Somente a chamada do comercial a faz emergir daquela hipnose letárgica. Num repente vê-se ali sentada, reconhece a solidão em que se transformou sua vida, de uma hora para outra, inesperadamente.
Levantou-se e deteve-se atrás da porta de uma grande estante. Seu corpo doloria de um peso de tempo incomum. No silêncio poderia escutar suas juntas e seus ossos estrilando como um monturo de ferro que se retorce e se acomoda no chão. É ainda jovem. Têm ainda atrativos, agora escondidos sob um manto de tristeza que a enfeia. Está mais velha e mais feia porquê agoniza junto de um amor construído com cuidado. Está vazia porquê sozinha na sala e no mundo, lamenta que o amor é dúbio e que não há sentir que vença um embate com a razão. Está ferida de morte pois tudo que aprendeu sobre felicidade não passa de fábula fácil e infundada.
De uma pequena caixa retirou fotos e as rasgou, uma a uma, entre lágrimas e recordações distantes. Fotos sempre a impressionaram, para ela continham mais que a estampa de um momento e não se restringiam a seus protagonistas. Todo um tempo estava ali guardado. Imaginava que se possível fosse mover a lente, ampliar o foco, viajaria pelo momento congelado, entraria nas casas, perceberia nos gestos e nas atitudes o dinamismo irresistível do estático.
Quantas felicidades escondiam-se em uma simples foto. Quantos momentos certamente serão eternos, pois eterna é a história. “O amor pode ser efêmero, mas o instante, definitivamente, é eterno”, pensou, em sua solidão e pensava na cama vazia e no prato solitário sobre a mesa e na angústia que engoliria, homeopáticamente, dali por diante.
Na cozinha fêz ovo e comeu. Na geladeira deixou que o ar gelado a resfriasse e a demovesse de idéias tolas. Na janela olhou o brilho dos faróis lá embaixo e as estrelas no céu e começou a perceber que entre o chão e o firmamento é que as felicidades se escondem e que, com o coração aberto e os pulmões dispostos, encontraria, quem sabe logo, mais uma.
Quantas pessoas podem estar se sentindo assim nesse exato momento? Rasgando fotos pra que não sobrem recordações do que já não exite mais...Guardando a vida na geladeira, na esperança de poder saboreá-la mais tarde...será?
ResponderExcluirBom dia!
ResponderExcluirRecordações, solidão...
Um cenário diário de muitas vidas.
Belíssimo texto.
Vim retribuir sua preciosa presença em meu jardim e também te sigo.
Tenha um dia especial.
Com carinho, Lady.