Li no jornal de sábado, na coluna do Affonso Romano de Sant’Anna, uma
matéria sobre o menor conto já feito no mundo. O autor, um tal de Augusto
Monterroso, nasceu na Guatemala e - tenho pra mim - sua obra não deve ter se resumido
a isso, porém acabou ganhando notoriedade, como o autor do menor conto do
mundo: "Quando acordou, o dinossauro
ainda estava lá."
Na hora morri de rir... “isso não é um conto”, pensei eu... é uma frase,
uma oração, tudo menos um conto !
Um conto tem que ter enredo, trazer no seu bojo início,
meio, fim... há que comportar uma narrativa coerente, um desenlace trabalhado,
um sentido de texto... não pode embutir-se numa mera frase, utópica, irreal: "Quando acordou, o dinossauro ainda
estava lá.".
Isso é ridículo, subestima autores renomados e mesmo os sem renome, ou
ainda os que acham que escrevem alguma coisa, como é o meu caso. Diante dessa euforia, causada inicialmente pela
constatação de que: "sim, eu sou um bom escritor...! Meus contos são sem
dúvida melhores que essa porcaria de frase...!” E por uma frustração incontida,
uma vontade de gritar a quem pudesse ouvir: "Há pessoas que vivem
disso...!!" - Comecei a analisar melhor a frase, tentar entendê-la, analisar
sua subjetividade, o mistério escondido por detrás daquele despertar e daquele
dinossauro...
“Quando acordou, o dinossauro
ainda estava lá.” Me veio a luz: “Sim...!” Como não percebera antes...??? O
mistério está no entorno, no antes e no depois, no oculto... na viagem fabulosa
que poderemos fazer desde o momento em que um cidadão comum, no momento em que
desperta de mais uma noite de sono, percebe-se na companhia insólita de um
dinossauro. Certamente ele não estava ali ontem, antes do sonho. Com extrema
certeza esse Tiranossauro Rex,
forjou-se na noite anterior, num embalo qualquer, regado a muita birita.
Imagino então aquele homem, beirando os trinta e cinco anos, recém
separado, após um casamento turbulento de quase dez anos, excitadíssimo com a
idéia de beijar aquela boca, tocar naquele corpo que o avilta diariamente, que
afronta suas idéias e seus pensamentos, dizer besteiras no ouvidinho imaculado
daquela moça, aquela menina que preenche seus espaços ociosos, que perturba sua
rotina de trabalho e que só tem vinte e três aninhos...
Aquela menina que acabara de marcar um encontro por telefone com ele,
suado, saído do trabalho, enfurnado no vagão do Metrô, sem saber se ri ou se
chora, esforçando-se para não gaguejar, não deixar transparecer o vulcão que
lhe assoma a alma e o sexo, pela possibilidade, somente pela possibilidade,
agora tátil, de tê-la entre os braços.
Ele
se anima, estampa na face o retrato de um bobo, meio rindo, meio sério, as
pálpebras tremendo numa epilepsia louca, as pernas bambas, as pessoas olhando
seu estado, por dentro da calça, o volume indiscreto que surge e que,
atrapalhado, tenta esconder com a pasta. Uma velha vê e ruboriza, um rapazinho
se recosta, esbarra, pretende pedir informação sobre algo, desiste. A próxima
estação, Carioca.
Desce ainda atordoado, pela proximidade daquele encontro, tantas vezes
desmarcado, atravessa o Largo, olhar fixo no nada, deixando-se atropelar pelas
pessoas e pelos carros e por seus vagos e distantes pensamentos. Sua tanto na
noite que a camisa que veste, embora de tecido barato, reluz qual seda pura.
O local do encontro é um bar, pequeno e discreto, no Largo do Bicão,
onde as pessoas se encontram após o trabalho para o Happy Hour de todos os dias.
Ele para na porta, titubeia, entra ou não ? Falta meia hora e ele pede
um chope.
Pessoas riem e falam alto, discutem mulher, futebol e política, falam
das bombas, das armas químicas, da vizinha e das cantadas dentro do
escritórios. As palavras dispersas se perdem e se acham, filtradas pelos seus
ouvidos atentos. Bebe o chope, pede outro, bebe outro, pede mais um. Olha no
relógio: quase a hora.
Antecipa o encontro em pensamento: ela
entra, portando sua beleza estonteante, os lábios carnudos se entreabrem, num
“oi” maroto, ela se aproxima dele, os seios pequenos, rijos, a cintura fina, a
pele alva como a espuma daquele chope, as mãos finas e compridas o tocam no
ombro, ela o beija demoradamente.
O beijo termina e ele ainda parece beijar o ar, anestesiado, até que ela
chame sua atenção. Ele ri, ela ruboriza. Nunca haviam se beijado. Tudo ficara
apenas na promessa, num “quase” absolutamente incômodo.
Ele pede mais um chope. Está empolgado. O efeito de bebida começa a lhe
fazer a cabeça. Ri sozinho. Participa do papo do vizinho, concordando com sei
lá o quê: “é culpa do sistema...!”, afirma convicto.
Olha novamente o relógio. Meia hora
se passou. “Normal mulher atrasar”,
pensa.
Disperso em seus pensamentos não percebe a mulher que se aproxima e lhe
pede fogo. Acende o cigarro dela e o seu. Ela puxa assunto, ele não dá importância...
Ela pergunta o seu nome, ele diz Rafael.
Ela fede a cigarro. É gorda e tem brotoejas espalhadas pelo rosto, além
de um bigodinho nada convencional, que faz lembrar o “Latino” dos velhos
tempos.
Ele pede um conhaque, bebe. Pede outro chope, entorna. Ele precisa se
livrar dela. Está ficando bêbado e sem paciência. Vai urinar. Nem tem tanta
vontade, mas precisa de qualquer maneira se livrar da orca que encalhou na sua frente. Enquanto a urina dourada se perde no vaso,
pensa na sua musa: vinte e três aninhos, lábios de veludo, seios que devem
caber na palma de suas mãos... lembra daquele olhar que tem vergonha de
encará-lo, lembra dos seus cabelos revoltos pelo vento em qualquer tarde,
lembra das palavras que sempre o envolveram...
Enquanto tenta se recordar de máximos detalhes, o celular toca. É ela, a
musa. Não vai ao encontro. Ligou uma amiga, pedindo que a ajudasse num trabalho
na faculdade... Enquanto sua voz é
transferida do celular para seus ouvidos e dali para seu cérebro, um filme vem
a sua cabeça...
Tudo que planejara, todo seu esforço, seu jogo de sedução semanas a fio,
tudo por água abaixo. Insiste. Um não, seguido de outro.
Percebe-se todo urinado e zonzo, efeito do conhaque. Vacila nas pernas,
dá meia volta, respira fundo.
Ao retornar ao bar, vislumbra a Orca. Já não lhe parece tão feia, na
verdade tinha o seu charme, tinha um olhar penetrante e um cabelo... um cabelo
diferente, ele acha. Ela sorri, ele pede a saideira, duas, uma para ela. Ela
sorri, agradece, joga um charme, um gracejo indecente.
Paga a conta, vão embora juntos. Os dois, seguem pela noite fresca até a
Rua dos Andradas, onde um hotelzinho de quinta categoria oferece no letreiro
descontos promocionais. Abraçados, agradecem a sorte daquele encontro de almas
tão pedintes.
O final da estória é mais que óbvio: no dia seguinte ele acorda, ela
está ali, nua, ao seu lado. É mais feia do que imaginou. É mais feia do que
qualquer coisa que já tenha imaginado, porém inspiração para um conto que em
breve escreverá: “Quando acordou, o
dinossauro ainda estava lá”.
João Mario Fleury Corrêa
Rio de janeiro, julho de 2003.