quinta-feira, 27 de maio de 2010

Tristeza Demais



Sentado aqui nesse cais
A vida me parece mais simples
Ouço a voz do vento
Percebo o que invento
Ao menos tento.

O problema é o mar
Diversidade de enigmas
Misteriosa brisa
De tempos ancestrais.

O problema é o mesmo
Desde Cabral
Vespúcio
Desde o anúncio
Que mudou o mundo.

Sentado aqui nesse cais
Como indagações sem respostas
Sinto o cheiro da brisa
Arrebatar-ma a paz...

Tristeza demais.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Instante


À noitinha ela vê a novela. Não tem sono, mas um quebranto lhe sobe o corpo e a adormece acordada. “Morta-viva”, pensa...

Estirada no sofá, ela não tem ânimo sequer para fechar a janela, logo que a chuva cai: deixa entrar o vento molhado e encharcar o Gobelin, sobre o qual pesa uma pequena mesa, que por sua vez sustenta uma ferida recente, estampada nos porta-retratos que, alheio, a fita.

Ele não deveria mesmo saber o mal que a causaria afastando-se assim e ela, segura, não quis chantageá-lo com emoções e resquícios de passado ou fotos na parede remontando antigas felicidades.

A decisão de sair devia ser tomada friamente, pensava, ou corria-se o risco de chafurdarem na mesmice do pão e manteiga e café e beijo na testa de bom-dia, na involuntariedade dos gestos que fazem do casamento a roda-viva dos conformados, na manutenção das aquisições que o tempo trás como teia e nos envolve a aguardar a aranha que nos imobilizará por inteiro e sugará nossos sucos mais secretos, nossa disposição para a mudança. Apesar da dor, ainda era isso que pensava.

Marcia vê a novela, mas é como se não visse. Em seus olhos parados refletem-se as imagens intermitentes da TV. Qualquer pessoa mais atenta saberia quais atores reverberavam-se, como Narciso e o lago, em seus olhos profundos de vazio.

Somente a chamada do comercial a faz emergir daquela hipnose letárgica. Num repente vê-se ali sentada, reconhece a solidão em que se transformou sua vida, de uma hora para outra, inesperadamente.

Levantou-se e deteve-se atrás da porta de uma grande estante. Seu corpo doloria de um peso de tempo incomum. No silêncio poderia escutar suas juntas e seus ossos estrilando como um monturo de ferro que se retorce e se acomoda no chão. É ainda jovem. Têm ainda atrativos, agora escondidos sob um manto de tristeza que a enfeia. Está mais velha e mais feia porquê agoniza junto de um amor construído com cuidado. Está vazia porquê sozinha na sala e no mundo, lamenta que o amor é dúbio e que não há sentir que vença um embate com a razão. Está ferida de morte pois tudo que aprendeu sobre felicidade não passa de fábula fácil e infundada.

De uma pequena caixa retirou fotos e as rasgou, uma a uma, entre lágrimas e recordações distantes. Fotos sempre a impressionaram, para ela continham mais que a estampa de um momento e não se restringiam a seus protagonistas. Todo um tempo estava ali guardado. Imaginava que se possível fosse mover a lente, ampliar o foco, viajaria pelo momento congelado, entraria nas casas, perceberia nos gestos e nas atitudes o dinamismo irresistível do estático.

Quantas felicidades escondiam-se em uma simples foto. Quantos momentos certamente serão eternos, pois eterna é a história. “O amor pode ser efêmero, mas o instante, definitivamente, é eterno”, pensou, em sua solidão e pensava na cama vazia e no prato solitário sobre a mesa e na angústia que engoliria, homeopáticamente, dali por diante.

Na cozinha fêz ovo e comeu. Na geladeira deixou que o ar gelado a resfriasse e a demovesse de idéias tolas. Na janela olhou o brilho dos faróis lá embaixo e as estrelas no céu e começou a perceber que entre o chão e o firmamento é que as felicidades se escondem e que, com o coração aberto e os pulmões dispostos, encontraria, quem sabe logo, mais uma.


terça-feira, 25 de maio de 2010

Camões de Cueca - A Origem do Nome



Em 1999 escrevi uma crônica que narrava a estória de um recém-solteiro, livre na cidade do Rio de Janeiro por uma noite, tentando naquele dia realizar todas as proezas que não realizara em vinte anos de casamento. Esta crônica desapareceu em uma das muitas mudanças de residência que fiz posteriormente. Mas ficou a lembrança de que, em um dado momento, já chegando em casa após a noite da alforria, o protagonista sobe à mesa do zelador do prédio em que mora e, embriagado, recita Camões, vestindo apenas cuecas, num delírio insano, para escândalo dos demais moradores que, àquele horário já iniciavam suas rotinas matinais.

A crônica se perdeu, mas o nome sempre me marcou e achei sugestivo para batizar este blog.

Devo esclarecer então que não era Camões quem estava de cuecas, mas o protagonista dessa perdida crônica !

Em 1987 comprei em um sebo no Rio de Janeiro uma edição dos Lusíadas, que guardo com carinho até hoje e muito representa na minha vida.





sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Estupro



          No meio do nada o carro parou. “Desce”, ordenou ele. O homem era forte e fedia feito um porco.   Tobias não disse palavra. Abri a porta de trás do Monza e desci, trêmula.
          Estava escura a noite, a não ser pelo farol e pelas lâmpadas das casas ao longe, que tremeluziam como minúsculos vaga-lumes atordoados.
          Ali fiquei, paralisada, aguardando que o carro desaparecesse por detrás da encosta. Por alguns minutos distingui no silêncio o ruído do motor se extinguindo até que tudo se tornou novamente silêncio.
          Meu corpo todo doía e havia sangue seco nas minhas narinas e no canto da boca. Lentamente comecei a caminhar, em direção às luzes.
          Estava trôpega, talvez bela bebida, talvez pelo cansaço. Queria chorar, mas nem isso. Imagens não me saíam da cabeça, como flashes, picadas, distorcidas, não tudo... alguma coisa apenas, sexo, dor.
          Devia estar quase amanhecendo. A cidade ao longe, a distância. Talvez em duas ou três horas, nesse meu ritmo.
          Com a língua percebi que me faltava parte de um dente. Lembrar de tudo seria pior. Imagino o que fizeram, aqueles animais nojentos, me rasgaram ao meio, me forçaram por trás, despejaram no meu corpo aquela coisa imunda.
          Não posso cogitar polícia... não quero mais sofrimento, não quero outro estupro, não preciso que toquem meu corpo com pinças, procurando sinais ou rastros estranhos à minha intimidade. Meu corpo dói.
Enquanto ando, penso. Violaram minha carne mas não todo meu ser. Deviam ter me matado. Súbito um arrepio de medo. Por que não me mataram? Afinal, conheço Tobias da noite, sei onde se esconde aquele rato, o outro homem não, mas seria fácil chegar até ele e a outros como ele, que vivem em pocilgas, à espreita de oportunidades sórdidas.
          Por que diabos não me deram um tiro? Não haveria lembranças, nem essa dor que me lateja o sexo e desce pelas pernas e sobe pelas costas e mói meus seios mordidos com violência. Não haveria esse sangramento de alma, que dói mais do que qualquer hematoma, porque dilacera o que temos de mais íntimo, a nossa verdade íntegra, o que não é de mais ninguém.
          Caminho há meia hora e em meus pés já surgem bolhas, a cidade adiante e agora uma quase claridade vinda do dia que raia. A boca seca, o hálito de uísque ruim. Bebi muito, acho que me atirei nos braços de muitos homens, Tobias, o outro, não queria os dois, não faria com os dois.
          Tive medo, levei um murro, hotel de terceira, quarto 106, na rua barulho e buzina e gritos de bêbados.
          Algo enorme me rasgando e o suor do homem pingando em meu rosto e mais tapas e socos, aquele cheiro de sexo e desodorante ruim e Tobias por trás, a fronha mordida e o grito engolido, jamais com dois. Ventilador de teto, fumaça de tragada mal dada, apressada, e o último golpe de que me lembro, antes do carro, antes desta estrada que me leva à cidade, aos vaga-lumes já não tão atordoados.
          Por que não tiraram minha vida, minha Nossa Senhora, meu Santo Antônio...
          Por que não levaram essa vida desgraçada, junto com essas lembranças que hão de me perseguir sempre, como lagartixas perseguindo insetos, como insetos perseguindo luz.
          Súbito um ronco de motor, a luz na curva, mais forte, o Monza.
          Não corro, não posso, não tenho forças mais para nada, paro, a porta abre, o homem me aponta o cano, um tiro, dois, na cara. Tobias não disse palavra.

 

terça-feira, 18 de maio de 2010

Duas Panelas



Há duas panelas no fogo
E há saudade queimando no peito
E morte que ronda
Cozinhando um deus que prezo por medo.

Há um dedo de mim
No ato que falho...
Há um pouco de sal
Pimenta normal
Na vida que vivo, afinal.

Há duas panelas no fogo
Que nutro !
Uma ferve o leite que enoja
Outra a massa que engorda
Um desespero banal,

Banal.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Lamúria



Se eu gritasse
E me ouvisse
Tarde da noite me assombraria.

Se eu esquecesse
E me recordasse
Mesmo assim não me lembraria.

Se eu sumisse
E me achasse
Ainda assim não me encontraria.


João Mario Fleury Corrêa

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Naufrágio



Não sei o que faço
Não sei o que penso
Não sei por que temo.

Não agüento o desprezo
Não sei se reajo
Não vejo saídas.

Estou louco por dentro
Sou pouco por fora
Estou carne
Sou resto
Sou falho.

Estou louco por dentro
Por gula
Por fúria
De sede
E luxúria.

Receio minha alma
Meu elo com o mundo
Que nulo
Se bate
Se geme
E me afundo.

João Mario Fleury Corrêa

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Morte


Como se por aqui rastejasse tua ausência
Perturbadora sombra delineando frestas e cantos
Como se por aqui rastejasse
Possuída de um vazio sufocante
A ausência repugnante de ti.

Como se ainda me lambesse os olhos fechados
A espreitar algum brilho por detrás das pálpebras mortas

Como se ainda molhasse minha língua seca e inerte
Para que dissesse o sim fatal de uma prece
Para que tudo cesse como folhas imóveis ao vento em meio à tempestade
Para que tudo cale em meio a um grito de dor inaudível
Para que tudo seja sorriso na morte e na agonia do fim

Como se aqui rastejasse alguma ausência assim.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Go Back



          Decapite-me. A flor da minha lápide é vermelha ou roxa. Vi ou tenho sentido e, pôxa, não queria estar morto, não nessa noite de alguma expectativa e não mais o mero espanto comum que me vinha tanto.

          Rapte-me, a Dafne nem saiu da cama e não pode ver minha alma esvaída de mim, sobrevoando a cozinha, onde as latas vazias de cerveja e as garrafas secas de vinho repousam moribundas, estagnadas em seus fins previsíveis demais.

         Decapite-me ou fuzile-me, mas entenda: minha morte é uma garrafa vazia, mas virão outras, entornadas ou não, consumidas, desprezadas, digeridas, dominadas, recicladas.

          Minha morte é um Möet Chandon ou uma Coca-Cola, vazias pouco valem ou valem o mesmo: nada.

          Rapte-me a hora anterior, o momento antes do sono da morte, o último suor do amor e o apagar das luzes. Devolva-me à vida e me lance em seus braços, não prometo nada, não mudo nada, mas darei valor a cada instante, como nunca.

          Decapite-me, fuzile-me, trucide-me, aniquile-me, mas não deixe exposto meu rosto, meu corpo.

         Se ela acorda ? Ela chora se acorda, agarrado ao frio corpo intacto. Proponha-me um pacto, de voltar à vida ou não me proponha nada, mas não quero ver meu corpo nu enquanto minha alma paira aqui e acolá, em busca de vestígios, na porta, na borda dos copos, nas pontas de cigarro, no beijo enlouquecido do que terá acontecido.

          Fuzile-me, a mim e à minha alma para que nada seja resíduo, para que nada seja espera, para que nada seja ausência.

          Destroce-me, ou me deixe dormir, de volta, em mim.

João Mario Fleury Corrêa

domingo, 2 de maio de 2010

Metamorfose



Árida terra
Casebre gris
Pálida Cris:
Crisálida-inda.